Karine Coelho 09/04/2019
E viveram felizes para sempre?
Diversas obras literárias, sejam elas um livro, uma trilogia ou um ciclo, terminam de modo épico, têm seu final feliz, triste, ou o que for e cabe a nós, leitores, imaginar o que teria acontecido depois. Alguns autores escrevem obras complementares para satisfazer essa curiosidade: é o caso do desnecessário "E Foram Felizes Para Sempre", conclusão da série "Os Bridgertons" de Julia Quinn. E, para mim, é o caso também deste volume de Ursula K. Le Guin.
Vinte anos depois da publicação do último livro do Ciclo Terramar, "A Praia Mais Longínqua", Le Guin resolve lançar este volume. O final da saga foi apoteótico, porém um tanto quanto melancólico. Neste novo livro, continuação direta do último, somos apresentados ao que aconteceu depois da grande aventura de Gued e de quebra revisitamos outra personagem marcante, Tenar de Atuan. É ela, porém, quem dá o tom desta trama melancólica, filosófica e de questionamentos feministas. Nada disso, na minha opinião, é um defeito. A saga demonstra amadurecimento junto com seus personagens: Gued não é mais o garoto assombrado do primeiro livro, nem o grande mago do segundo, muito menos o Arquimago poderoso do terceiro; Tenar não é mais a jovem sacerdotisa dos Tùmulos. O primeiro, alquebrado pelos acontecimentos do último livro, tenta se curar e se adaptar à sua nova e desconfortável condição, a de homem comum de meia idade. A segunda, depois da glória que experimentou, já está confortável em sua pele de fazendeira respeitável, mesmo que numa terra estrangeira, ao mesmo tempo em que questiona seu papel na sociedade e as escolhas que fez na vida. As discussões dos dois a respeito de suas vidas rendem diálogos profundos e interessantes, repletos de melancolia. São dois protagonistas já maduros cheios de questionamentos, reaprendendo a viver, e isso faz o volume ser fantástico. No meio disso tudo uma criança, Tehrru, deformada e violentada, também se curando de suas dores e traumas, descobrindo quem é num mundo que a teme e a repudia por sua aparência. Sutilmente, ao fundo da narrativa, poderes sombrios se mostram lentamente conforme avança o livro, culminando em um final surpreendente.
Muita gente não gosta desse livro (discursos feministas, mulheres questionando seu papel na sociedade, bruxas discutindo sexismo e uma história madura e calma aparentemente incomodam, nada de novo sob o sol) mas eu recomendo a leitura. Ele não tem grandes viagens, grandes magias e aventuras, mas não deixa de ser uma obra profunda em sua aparente lentidão. É o famoso "final feliz" (não chega a ser porque existe um quinto livro) porém cheio de cicatrizes. Glorioso e marcado. Como Tehanu.