Maria - Blog Pétalas de Liberdade 04/03/2016CebolaPrimeiramente, é preciso situar-se um pouco na época e na região onde se passa a história: estamos nos Estados Unidos, em 1856. Pelo que pesquisei após a leitura, poderíamos dividir o país em norte (mais industrializado e contra a escravidão) e sul (mais rural e favorável a escravidão).
O narrador, Henry Schackleford, tinha uns 10 anos na época, era negro e escravo e morava no Território do Kansas, no Sul. Até que um dia, apareceu um sujeito estranho na barbearia onde o pai de Henry trabalhava. O sujeito era nada mais nada menos que John Brown, um homem branco que lutava pela abolição da escravidão. Após um tiroteio, Henry foi levado por John Brown que dizia estar libertando o garoto, só que, na confusão, Brown achou que o garoto era uma menina. Assustado, Henry não desmentiu o mau entendido.
"- Não tinha como perguntar nada - disse Bob. - Meu amo e eu estávamos indo pra cidade. Ouvi um barulho. Quando vejo, ele surge da floresta com uma espingarda apontada para a cara do amo. Disse, 'Vou levar sua carroça e libertar seu homem de cor.' Não me perguntou se eu queria ser libertado. Claro que estou aqui porque tinha que vir. Mas achei que fosse me deixar no Norte. Ninguém disse nada de lutar contra ninguém.
Era aquela a questão. O Velho tinha feito o mesmo comigo. Ele achava que todas as pessoas de cor queriam lutar por sua liberdade. Nunca lhe passava pela cabeça que pudessem pensar de outra maneira." (página 80)
A partir daí, vamos acompanhar a vida de Henry como Henrietta ao longo de alguns anos no bando do Velho John Brown. Inicialmente, seu desejo era conseguir fugir e voltar para "casa", mas um escravo que tinha contato com ideias abolicionistas poderia se tornar um perigo para os homens brancos e proprietários de escravos, de forma que voltar poderia não ser a melhor opção. No bando do Velho John Brown, Henry foi apelidado de Cebola (por um motivo que me fez rolar de rir), e era considerado por Brown como um amuleto da sorte, se bem que durante a leitura é possível perceber que ela não trazia tanta sorte assim, mas o Velho interpretava as coisas como queria.
Talvez vocês não saibam, mas John Brown realmente existiu e lutou pela abolição da escravatura, mas, pelo que pesquisei, parece que o autor James McBride resolveu colocar ele e outras pessoas reais na trama recriando suas personalidades, tanto que Brown é retratado como um homem quase fanático, que acreditava ter recebido uma missão divina na Terra, parecia meio louco e gostava de fazer longos discursos. Se ele foi realmente assim, eu não encontrei nada que confirmasse (as imagens que vi dele me deram a impressão de ser um homem bem mais "normal"), mas o fato é que o autor criou um personagem interessante e que me deixou curiosa para descobrir quem ele era de verdade ao longo da leitura.
"O Velho estava mentindo, é claro. Ele não disse nada sobre se render ao governo americano. Sempre que dizia algo sobre a vontade de Deus, significava que não ia cooperar ou fazer algo além do que achasse apropriado. Ele não tinha a menor intenção de deixar o Território do Kansas, de se entregar ou dar ouvidos ao que lhe dizia um soldado branco. Era capaz de contar uma mentira por minuto a favor de sua causa. Era como todos na guerra. Acreditava que Deus estava do seu lado. Numa guerra, todos têm Deus do seu lado. O problema é que Deus num diz de que lado Ele não está." (página 92)
Eu demorei um pouco mais do que imaginava para ler a obra, mas foram por fatores externos que reduziram meu tempo para leitura e não por falta de fluidez da escrita do autor. Confesso que inicialmente levei um certo choque ao ver um linguajar tão informal e que eu não esperava encontrar em um livro que se passasse em 1856.
Se você é, assim como eu, branco, nunca vai conseguir entender realmente o que é ser negro e sofrer preconceito pela cor da pele, o mesmo serve para os homens que não vão entender completamente o que é ser mulher e sofrer com o machismo, e também para os héteros em relação a homossexualidade, e para todas as outras formas de descriminação que os que fazem parte da classe opressora (mesmo que sem ter escolhido isso) não conseguem perceber em sua totalidade. Com a leitura do livro é possível entender bem essa questão, além da importância da representatividade.
"Me deixava um pouco triste, pra dizer a verdade, quase nunca tinha negros nesses encontros, e aqueles que apareciam estavam sempre arrumados e ficavam quietos como camundongos. Para mim, parecia que todo aquele estardalhaço pela vida dos negros não era muito diferente ali do que era no oeste. Era como um grande e longo linchamento. Todos podiam falar sobre os negros, menos os próprios negros." (página 2015)
E também é possível entender um pouco do que a opressão (seja ela pelo racismo, pelo machismo, pela homofobia...) faz com a cabeça do oprimido, levando-o a tentar ver um lado bom em sua situação. No trecho abaixo, vocês verão como Cebola achava que ser escravo era melhor: ele tinha um teto e comida, não precisava dormir ao relento nem caçar seu alimento, mas a que custo? Ele não tinha possibilidade de ter uma casa melhor ou escolher o que queria comer, e podia ser vendido como uma mercadoria. O livro também toca na questão de que não seria apenas fazer com que os negros deixassem de ser chamados de escravos, era necessário dar condições e suporte para eles, para que pudessem viver como as demais pessoas, além de ouvi-los. A liberdade é imprescindível sim, mas precisa ser plena e vir também com as oportunidades.
"Tinha voltado à servidão, é verdade, mas ser escravo não é assim tão ruim quando você sabe como funcionam as coisas e já tá acostumado. A comida é de graça. Você tem um teto. Outras pessoas têm que se preocupar em atender às suas necessidades. Era mais fácil do que viver na estrada, fugindo de bandos e dividindo um esquilo assado com mais cinco homens, enquanto o Velho agradecia ao Senhor aos berros pelo bicho antes que você pudesse tocar na comida e, mesmo quando podia, a carne era tão parca que mal dava para tapar o buraco do dente." (página 139)
Acho que eu nunca tinha lido uma história onde um menino precisa fingir que é menina, e esse foi um dos pontos que mais me fez querer ler a obra, e durante a leitura, muitas vezes me esqueci que a Cebola era um garoto (o que talvez fique visível em minha incapacidade de definir se uso só ele ou ela durante a resenha). Eu acho que quem gostou de "O Sol é para todos", clássico livro da escritora Harper Lee, também pode gostar de "O pássaro do bom senhor", os dois se passam em épocas diferentes mas falam sobre o racismo, e tem uma cena entre a Cebola e John Brown mais para o final do livro de James McBride que me emocionou tanto quanto uma das cenas finais de "O Sol é para todos", uma cena onde a gente compreende tanta coisa com poucas palavras. Mas ressalto que "O pássaro do bom senhor" é um livro que traz muito mais risadas com as confusões em que a Cebola se mete, do que cenas emocionantes (talvez seja uma forma de atenuar um pouco o derramamento de sangue que os conflitos entre o bando de John Brown e os defensores da escravidão causavam).
Sobre a edição da Bertrand Brasil: eu achei a capa bem bonita e foi outro fator que me fez querer ler o livro; na diagramação, a margem inferior ficou um pouco instável e, assim como a exterior, era pequena algumas vezes, as letras e o espaçamento tem um tamanho bom, encontrei alguns erros de revisão. O livro é dividido em partes (que tem o desenho de uma pena), que são divididas em capítulos, e alguns títulos de capítulos davam uma ansiedade enorme de saber o que iria acontecer.
Enfim, "O pássaro do bom senhor" foi uma boa leitura, da qual eu não sabia o que esperar mas que quis ler pelo fato inusitado de ter um menino vestido de menina, e que acabou me fazendo entender mais sobre a questão da escravidão e da história dos negros nos Estados Unidos. Se eu fosse norte-americana ou se tivesse um mapa mostrando os caminhos por onde Cebola e o bando do Velho John Brown passavam, certamente minha compreensão sobre algumas partes poderia ser melhor. Recomendo! Acho que todo mundo precisa ter contato com uma outra época e com uma outra realidade de vez em quando.
Por hoje é só, espero que vocês tenham gostado da resenha (talvez ela pudesse ser melhor, sempre pode, mas isso é realmente tudo o que eu consigo fazer enquanto leitora que quer falar sobre "O Pássaro do Bom Senhor" com vocês).
"(...) não existe nada melhor quando se chega ao fundo do poço do que encontrar um amigo lá." (página 166)
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