spoiler visualizarLeticia_gg 18/07/2017
Termos de uso importam para demônios
"Li e concordo com os termos de uso de..."
99,9% das pessoas, para não dizer todo mundo, marcariam essa opção automaticamente, sem ler uma linha sequer que pelo menos lhes permitisse saber com o que estão concordando. É possível que estejam vendendo a alma ao demônio sem ao menos se darem conta disso.
Entretanto, a lógica e o bom senso dizem que, se você realmente está vinculando a sua alma ao diabo, o mínimo que você deveria fazer antes de se sentar em seu colo de vez é ler os termos de uso. Parece óbvio.
Até que não seja.
Rafael tem 11 anos, está desesperado, sozinho, sofrendo. Depois de perder o pai para a morte, a mãe para o descaso e o irmão para o desprezo, ele decide estudar ocultismo. Quando o conhecemos na história, ele já está há anos (nas palavras do próprio autor) envolvido com o lado obscuro, com o além, em busca de um contato qualquer com seu pai.
[Aqui, já nos confrontamos com alguns dos problemas fundamentais da obra:
1) Rafael tem apenas 11 anos de idade. Alguns anos antes, ele nem tinha compreensão o suficiente para entender o que a deepweb representava. Além do óbvio de ser um estudo bastante traumatizante para uma criança, como ele já poderia ser estudioso há tantos anos sendo que ele nem tem tantos anos?
2) A deepweb não é de tão fácil acesso assim. Como Rafael tinha simplesmente adentrado o submundo da internet, pelo celular, sozinho sem ter problema algum? A DW esconde várias coisas, os avisos não circulam a toa.
Não estou colocando que as duas coisas sejam impossíveis, apenas extramente improváveis e, por isso mesmo, o autor deveria ter explicado.]
Seguindo na trama, somos apresentados, logo nos primeiros capítulos, ao sofrimento diário que Rafael passa nas mãos do valentão Fábio Eduardo, conhecido como Maguila. Andando sempre em bando, para deixar Rafael em desvantagem, ele é truculento e mimado. Apesar dos protestos de Renata, melhor amiga e primeiro amor de Rafa, Maguila bate no menino sempre que o vê e jamais é punido, pois sua mãe é rica e o livra de todos os problemas com dinheiro.
Cansado de reclamar sem ser ouvido e de ter todas as suas tentativas de fazer alguma coisa frustradas, Rafael decide recorrer ao além. Usando seu tabuleiro OUIJA para tentar mais uma vez achar seu pai e lhe pedir ajuda, ele acaba entrando em contato com uma entidade que lhe passa uma série de letras, formando um código. Depois de muito pensar sobre o que aquilo poderia significar, Rafael descobre que se trata de um link da deepweb e, decifrando-o, ganha acesso ao aplicativo "Pé na Tumba", o qual promete resolver todos os seus problemas.
No aplicativo, uma lista de demônios encontra-se à sua disposição para serem comprados. A promessa? O que Rafael mais queria: Proteção. Roubando o cartão de seu irmão, Beto, Rafa compra Estrela da Manhã, o fantasma protetor perfeito segundo seus critérios. Tudo parecia a caminho de se resolver, até que o "fantasma", na verdade um demônio, chega. Após ser invocado por Rafael em sua própria sala, Estrela da Manhã solicita a ele uma lista de sete nomes - sete desafetos - e parte para realizar seu serviço. Rafael está contente, finalmente tem sua proteção. Até que o primeiro nome da lista morre.
[Aqui, chegamos a mais dois problemas da trama:
3) Se Rafael era tão conhecedor do ocultismo, como poderia achar que um protetor, com uma feição claramente demoníaca, achado num site em que havia listas e listas de demônios ameaçadores, iria aparecer para simplesmente dar um susto nos seus inimigos? Isso seria mais provável para alguém que assiste Gasparzinho, não um frequentador assíduo da deewep.
4) Estrela da Manhã tinha um potencial imenso para ser o melhor personagem, mas se tornou apenas mais um clichê do demônio que ri "Hahahaha" e repete frases feitas que, se um dia foram ameaçadoras, hoje parecem piada.]
Após descobrir as reais intenções e a real natureza do demônio, Rafael, junto a Renata, Beto e Darla (namorada de Beto e, aliás, a única personagem de que realmente gostei, apesar de tudo), parte em uma jornada cheia de sangue, mortes e derrotas para deter Estrela da Manhã.
[O problema mais frustrante da história aparece aí, nas tentativas que Rafael faz para parar o demônio.
5) É TUDO MUITO CLICHÊ. O autor teve a chance de criar algo novo, mas apenas repetiu clichês - sal groso, cruz, água benta - sem desenvolver profundamente nada. Os rituais, para mim, foram a coisa mais absurda: eram meras receitas na internet, as quais, pela forma desleixada com que Rafael as executava, poderiam ser realizadas de qualquer jeito que tanto fazia, ainda assim dariam certo. Como leitora, me senti incrivelmente desconfortável com a artificialidade, a falta de realidade, daqueles rituais.]
Depois que todos que lhe importam morrem, menos Renata, o menino finalmente enfrenta o demônio frente a frente, ainda que o fantasma (ou corpo-zumbi?) de Maguila também esteja lá, para atrapalhar e depois ajudar. No entanto, para desespero da nação, o que faz Rafael vitorioso não é sua coragem, força nem nada disso.
É um erro de contrato.
Rafael havia roubado o cartão de seu irmão e, por isso, o contrato não valia mais. Tinha trapaceado, por isso o contrato estava desfeito. Aliás, o próprio fantasma dos fantasmas, o líder e chefe, apareceu em pessoa (ou em espírito? Em... Assombração?) para lhe dizer isso, ainda que estivesse adotando a forma do falecido pai do menino.
[Agora, os erros finais que, com o perdão da piada, são de matar.
6) Eu passei o livro TODO esperando o Rafael evoluir. Mentalmente, fisicamente, de alguma forma. Mas até na batalha final, até o último momento, ele foi fraco. Menos covarde, isso é verdade, mas fraco. Foi necessário que Maguila DEIXASSE ele bater no demônio (permissão, aliás, que não foi bem explicada, pois não ficou claro se Maguila estava ou não sob controle do demônio); e, mesmo depois de acertar o demônio, Rafael não venceu definitivamente. A quebra de contrato foi o verdadeiro fim da luta e ponto. E, apesar disso, o fantasma dos fantasmas fez todo um discurso sobre Rafael ser mais forte que Estrela da Manhã, sobre tê-lo feito correr etc - discurso que, sinceramente, não me convenceu nem um pouco.
7) O soco biônico e o olho amarelo de Rafael no final. Sério. O que foi aquilo? Sinceramente, seria muito mais digno e plausível colocá-lo numa aula de muay thai, como Darla sugeriu no início.]
Por tudo que foi dito, é um livro que não recomendo. Fico triste, porque é um autor nacional e eu gostaria muito que fosse o tipo de livro que eu desejasse passar para frente. A leitura é fácil, mas a edição veio cheia de erros, e isso desanimou ainda mais. É decepcionante ver uma revisão mal feita. Apesar de tudo, dou duas estrelas porque Vianco teve seu mérito em escrever uma coisa que tinha bastante potencial, pelo menos no que se propunha inicialmente. É uma pena que todo esse potencial tenha se perdido no caminho.