Júlio 19/08/2016
Fazer uma sinopse curta que faça jus à proposta de Filhos da Meia-Noite é tarefa difícil. O livro conta a história de Salim Sinai, que ao nascer foi trocado por outro bebê, sendo criado por uma família rica de mulçumanos ao invés de sua família pobre e hindu. Ao completar dez anos, devido à certos eventos, ele acaba descobrindo que possui o dom da telepatia, e ao explorar esse poder descobre várias crianças com os mais variados dons, crianças que ao nasceram em torno da meia-noite de um dia específico, o dia da independência da Índia, formam então os Filhos da Meia-Noite. Essa proposta fantástica é somente um fiapo do que o livro realmente aborda, o verdadeiro foco da obra é a Índia e as mudanças e conflitos que ocorreram após sua independência, principalmente de 1947 (ano de sua independência) até 1978, as vezes como pano de fundo, as vezes como narrativa principal.
Os assuntos incluem temas como os conflitos populares, entre castas, sociocenômicos, as guerras indo-pasquitanesas, a corrupção dos governantes, a situação do povo, eventos históricos como a morte de Gandhi e a ascensão ao poder de Indira Gandhi, tudo pelos olhos de Salim e de sua família. Ainda que todos os temas sejam tratados com seriedade, muitas vezes de forma gráfica, a história tem um ar de fábula, e consegue fazer seus comentários sem que o fantástico e o mágico se percam.
O livro começa realmente em 1917, contanto as origens da família que viria a cuidar de Salim, onde cerca do primeiro terço do livro é focado no avô materno Aadam Aziz. Nota que toda a narração é feita pelo próprio Salim, que aqui é um dos narradores mais únicos que eu já tive o prazer de conferir na literatura, que muitas vezes coloca dúvidas no leitor à respeito da veracidade de suas histórias. No início ele apresenta quase onisciência à respeito de fatos que ocorreram muito antes dele nascer, depois demonstra confusão em certos fatos históricos (como a data da morte de Gandhi) e até chega a mentir mais para o final do livro e essa inconstância na narração dá ao livro uma dinâmica genial.
A história é formada por dezenas de personagens, cada um servindo sua função e o autor faz um esforço para caracterizar até o menos relevante deles. Até o último capítulo do livro somos introduzidos à novos personagens o que dá um fôlego ímpar à obra, dando a sensação que seu mundo sempre está agindo, vivendo e respirando além daquilo que é apresentado ao leitor.
É um livro de realismo mágico, e portanto não há falta de situações inusitadas, inesperadas ou bizarras, porém também não há escassez de eventos contados com extremo realismo, de forma crua e sincera, que faz com que o leitor não esqueça de que aquelas atrocidades que ele lê realmente ocorreram, e a forma fluída e simples com que toda parte humana é descrita, principalmente durante a infância de Salim, realmente ajuda a conectar o leitor com aqueles personagens. O livro consegue ser cômico, trágico, sério e irônico sem perder seu tom.
A obra no geral não apresenta uma leitura difícil, Rushdie tem uma escrita fluída e muito eloquente, o que não se traduz em uma leitura rápida e fácil, é uma obra que requer atenção e dedicação por parte do leitor. Não só é importante lembrar e ter em mente os diversos personagens da trama, mas também prestar atenção à ironia que muitas vezes pode passar desapercebida e uma leitura mais casual, ironia essa que é um dos diferenciais da obra. É um livro que vai muito além de seus temas, não se pode deixar desencorajar caso a história da Índia não seja de seu interesse, pois apesar desse ser o panorama da obra sua sensibilidade reside naquilo que há de mais humano na literatura, que é a paixão de se contar uma história. Entre tantos chutneys e escarradeiras há muito o que ganhar ao ler essa obra fantástica.