Carlozandre 01/01/2010
Os nomes em vermelho
Quando Meu Nome é Vermelho, de Orhan Pamuk, foi lançado no Brasil, em 2004, o autor, embora já tivesse sido editado por aqui pela Record, que publicou O Castelo Branco, era pouco ou quase nada conhecido no Brasil. Dois anos depois, o sujeito abocanhou o Prêmio Nobel de Literatura quando sua editora, a Companhia das Letras, estava pondo em circulação seu romance Neve – e o livro, turbinado pelo prêmio, foi best-seller aqui no Brasil (a exemplo de Europa e Estados Unidos, onde suas traduções foram recebidas com entusiasmo).
Os livros do autor turco são narrativas que, assim como seu tema central, o das marcas produzidas pelo contato entre o Oriente e o Ocidente, unem com equilíbrio o melhor das tradições literárias européias e árabes. De uns, Pamuk extrai a visão (pós-)moderna do artista que reflete sobre seu próprio ofício, o olhar crítico sobre o conhecimento e suas múltiplas facetas, representadas na multiplicidade de narradores que povoa alguns de seus melhores livros. Dos outros, o autor apresenta uma habilidade de tecer histórias como quem alinha fio a fio numa tapeçaria que, ao final, torna-se um desenho rico, belo e detalhista.
Depois do Nobel, Pamuk foi quase integralmente publicado por aqui: saíram suas memórias, Istambul, e dois romances, O Livro Negro e o já citado O Castelo Branco. Mas confesso que, embora tenha conseguido me enlevar com todos eles (os jogos labirínticos misturando poesia e prosa casam especialmente bem com meu gosto literário), aquele que mais me arrebatou foi mesmo o já mencionado Meu Nome É Vermelho.
Nas 536 páginas do romance, somos apresentados a um livro maravilhoso, em mais de um sentido: é belo e magistralmente orquestrado e é uma história contada com um pé no realismo literário e outro na fábula fantástica que os árabes praticam como ninguém desde As Mil e Uma Noites. A própria trama do romance é uma edificação maravilhosa, cuja estrutura multifacetada resiste bravamente a resumos redutores — mas vamos tentar assim mesmo. No século 16, às vésperas do milésimo ano da Hégira, episódio fundador do Islamismo, o sultão de Istambul resolve encomendar à sua escola de artistas uma edição singular do Alcorão: um livro belíssimo caligrafado pelos melhores mestres da escrita e ilustrado com um retrato fiel do sultão, realizado com “o novo estilo” realista ocidental cuja prática o monarca testemunhou durante uma visita ao Doge de Veneza. Uma empreitada megalomaníaca que pode acabar muito mal se for descoberta pelos guardiões da fé islâmica, que consideram uma afronta a representação da figura humana.
O trabalho, portanto, precisa ser executado secretamente, e um dos mestres ilustradores convoca, para ajudá-lo, seu sobrinho, chamado “O Negro”. Para atender ao pedido do parente, “O Negro” retorna a Istambul após 12 anos de ausência para descobrir que sua prima, Shekure, por quem foi apaixonado na juventude e cuja mão lhe foi recusada pelo mesmo tio que hoje lhe pede favores, tornou-se uma bela mulher, mãe de dois filhos, esposa de um militar desaparecido em uma guerra quatro anos antes.
Numa narrativa que flui sem costuras visíveis entre vários gêneros, ocidentais e orientais, a história já começa com o assassinato de um dos mestres miniaturistas encarregados de ilustrar o livro do Sultão — uma morte que “O Negro” terá de desvendar ao mesmo tempo em que, às escondidas do tio, corteja sua antiga paixão. As tramas se interpenetram enquanto a narrativa, em camadas, vai se desenrolando pela voz de duas dezenas narradores: “O Negro”, Shekure, alguns dos mestres ilustradores cooptados para o livro secreto, o assassino do artista, o próprio cadáver do morto e até mesmo cores, desenhos e ideias e conceitos (o trecho que vocês leram acima, se não ficou claro, é narrado em primeira pessoa pelo Diabo).
Nesse mosaico polifônico de grande beleza, com influência da lírica árabe, Pamuk entrelaça temas como a relação entre o Ocidente e o Oriente, a autoria e o anonimato na arte e mesmo as disputas internas de um Islã flagrado em um momento de crise. Numa Istambul que sofre com a miséria e a carestia provocada pelas guerras constantes, ainda que governada por um sultão patrono das artes, começam a surgir pregadores que apontam a miséria do povo como um castigo de Alá aos vícios dispendiosos da corte do sultão e aos desvios da palavra divina expressa no Alcorão - num eco do processo de fanatização que desembocou nas constantes tensões fundamentalistas de hoje.
Em Meu Nome É Vermelho, Pamuk consegue o prodígio de aliar o detalhe preciso e lírico dos miniaturistas — como seus próprios personagens — ao vigor épico dos muralistas de ampla mirada.