Coruja 13/09/2011A princípio, fiquei meio sem saber como preencher o tema desse mês porque, sendo sincera, não conhecia tanto da produção regional exceto pelo que já tinha lido. Depois de me demorar um tanto pensando no assunto, o primeiro autor que meio veio à cabeça foi, claro, Ariano Suassuna e como eu já tinha mesmo colocado um monte de peças de teatro no meu rol de leituras, joguei Dias Gomes no meio. Faltava-me um nome que, depois de escolhido, era até bastante óbvio, porque faz muito tempo que estou querendo ler Gilberto Freyre.
Até pensei inicialmente em me aventurar por Casa Grande e Senzala, obra que se reputa fundamental para compreender a formação da sociedade brasileira e que estou devendo faz tempo, mas acabei desistindo porque sendo uma obra não apenas extensa, mas também complexa e a se considerar que eu estaria numa época de muito trabalho (mais tarde acabei trocando minhas férias para setembro; quando fiz a lista para o Desafio Literário 2011, não sabia ainda disso).
Pesquei então o Assombrações do Recife Velho.
Freyre foi uma completa e maravilhosa surpresa. Ele é culto sem ser pedante; consegue reproduzir a atmosfera de uma época sem datar seu texto e consegue passar suas histórias com a mesma pachorra das velhas bás contando história de trancoso sentadas na calçada.
O livro já interessante sem conhecer o Recife, que dirá tendo a oportunidade de percorrer as ruas e vielas, os campos e os sobrados descritos nele? Tirei um dia, logo após terminar o volume, para percorrer alguns dos locais de malassombros. Boa parte das ruas mudaram de nome, mas foi possível caminhar pelo bairro do São José e observar os sobrados antigos, visitar o Santa Isabel, com sua platéia invisível e o Palácio das Princesas, onde governadores antigos ainda tocam piano no salão nobre e visitam os governadores novos para anunciar desgraça.
O livro, que é uma coletânea de casos e ‘causos’, foi publicado por Freyre inicialmente como uma série de reportagens no jornal A Província, por volta da década de 30. Suas histórias foram colhidas a boca-miúda, com testemunhas e descendentes de pessoas que tinham vivido acontecimentos inexplicáveis, muitas vezes ligados a fatos históricos da cidade.
São contos como o da judia Branca Dias, a proteger sua prata escondida nos tempos do Santo Ofício; do Visconde Suassuna, senhor cruel de escravos, que após a morte aparecia pedindo missa; do lobisomem curado por fígado de menino, de onde se teria originado o Papa-Figo – vultos, barulhos e botijas enterradas em casas onde ocorrera mortes violentas.
Histórias que entraram para o imaginário popular e sobreviveram ao tempo, à luz elétrica e mesmo à demolição de muitas dessas casas históricas, abandonadas por seus sinhozinhos e suas iaiás.
Não li o livro de uma sentada só porque achei de começá-lo justo à noite – e a determinada altura comecei a me assustar com o barulho violento do vento na janela e os barulhos normais de uma casa à noite. Antes que um vulto me surgisse do nada, troquei Freyre por um romance água-com-açúcar e só fui dormir quando estava exausta demais para sonhar com alguma coisa.
Claro que, no dia seguinte, antes mesmo do café da manhã, eu já estava de volta à ele, sem me decidir se queria ou não chegar ao final e lamentando que não existisse um volume dois e três de assombrações.
Para completar o prazer da prosa de Gilberto Freyre - que aconselho ser melhor apreciada deitado numa rede, bebendo água de coco (ou cerveja, a depender da preferência do leitor...) - o livro tem ilustrações fantásticas de Lula Cardoso Ayres.
(resenha originalmente publicada em www.owlsroof.blogspot.com)