Pires 01/07/2014
Da solidão desejada
Nesta madrugada (01/07/2014) terminei a leitura de “A biblioteca à noite”, de Alberto Manguel. Fiquei surpreso ao saber, pela manhã, por meio de um post da Josiane Maria de Souza no Facebook, que hoje é o Dia Mundial das Bibliotecas. Coincidência!
Alberto Manguel é um conhecido amante da leitura e das bibliotecas, com várias obras sobre o assunto. “Atualmente vive no interior da França, num antigo priorado transformado em residência onde instalou sua vasta biblioteca” (http://www.companhiadasletras.com.br/autor.php?codigo=00309).
A esta segunda obra dele que leio fui conduzido pela mesma razão que me levou a ler a primeira (“Uma história da leitura”) e tantas outras de natureza semelhante: um desejo permanente e ardente de entender – por meio de um olhar que não o meu, para mim suspeito – porque eu aprecio tanto ler e porque dedico tanto tempo a esta atividade, hoje um tanto estranha para a imensa maioria das pessoas (pelo menos é o que sinto), envolvidas com afazeres e divertimentos bem mais vibrantes.
“A biblioteca à noite” é um passeio pelo mundo das bibliotecas, em diferentes lugares do mundo e momentos da história, guiado por um leitor contumaz, dedicado aos livros como fontes e objetos (de desejo e de contemplação), sensível ao mundo das letras como poucos. Compreende quinze ensaios graciosos e uma conclusão que culmina com isto: “O que (...) eu busco, ao final da história de minha biblioteca? Consolação, quem sabe. Quem sabe, consolação.”
Consolação! Para mim, não há dúvida de que se trata disso... mas não só. E consolo é algo a que se busca contra alguma coisa que desconsola.
Seriam a biblioteca e a leitura consolos para a incompletude do conhecimento portado por cada um? Não, pode ocorrer de ela revelar que o que alguém desconhece é maior muito do que imaginava, antes de perceber a vastidão do que há por conhecer. Seriam, então, consolos para a fugacidade da existência? Mas a biblioteca não reforça o quanto somos lampejo, apenas, ao esclarecer-nos que não podemos dar conta de ler uma ínfima parte de seu acervo? Consolaria a biblioteca a solidão? Mas não é sós, apenas, que conseguimos ler? Consolo para a desordem do nosso sentir e pensar, seria isso? Talvez, pela ordem que a leitura e a própria disposição organizada dos livros nas estantes nos faz desfrutar.
Sim, consolação, mas sem objeto ou direção específico. Dá para sentir. Mas não para explicar. Coisa (coisa indefinida) acessível somente para quem sente prazer na leitura, pois do contrário tornar-se-ia ela própria desconsolo, peso, ardência querendo explodir de dentro para fora.
A leitura dos ensaios é reveladora do que sente e pensa Manguel quando faz a afirmação da sua (também minha) dúvida final, neste livro saboroso. Os livros e a reunião deles em locais seguros (tanto quanto possível...) e acessíveis (tanto quanto permite...) são pensados a partir de dimensões reveladoras de sua importância para cada um e para a humanidade: Mito, Ordem, Espaço, Poder, Sombra, Forma, Acaso, Oficina, Mente, Ilha, Sobrevivência, Esquecimento, Imaginação, Identidade, Lar – são os títulos do ensaio, nesta mesma sequência.
Cada um dos ensaios mereceria uma resenha própria, que não cabe nesta, genérica e sem a intenção de explorar esta possibilidade. Mas valem comentários breves sobre pelo menos dois (os preferidos, os mais emocionantes?).
“Oficina” é o “cômodo menor em que trabalho”, um lugarzinho separado do local do acervo, onde o leitor leva aquilo que está usando no momento, juntando ao que mantém permanentemente sobre a escrivaninha como instrumentos de auxílio inseparáveis (dicionários, referências, objetos de valor afetivo para aconchegar). Uma espécie de esconderijo, que proporciona o isolamento para a leitura e o vagar do pensamento, ou as condições para o espírito formular... O ponto favorito da biblioteca à noite (como a preferia Maquiavel, por exemplo). A não ser que se trate da noite de um dia de inquietude, no qual mais convém o passeio pelas estantes, em busca de palavras ao acaso ou da obra que melhor possa responder às questões que pesam no momento aflitivo.
“Esquecimento”. Ah, essa memória que tanto falha! Traidora! Onde foi que li isso, quem foi que escreveu aquilo? A este apagamento a biblioteca ajuda a amenizar. Mas, contraditoriamente, quanto mais a ela recorre-se, mais brasas se acendem para em seguida se transformarem em cinzas levadas pelo vento do tempo... E não é só desse esquecimento vive uma biblioteca, mas também da deliberada destruição de seus acervos, como tantas vezes ocorreram e ocorrem, para esconder algo que não se deseja ou não se pode refutar; mas também da censura, que nem permite que se lembre o que se toma por perigoso.
Basta, pois esta resenha chinfrim já me roubou tempo que eu poderia estar usando para ler... E, além disso, quantos leitores ela terá? E quantos desses se motivarão a ler “A biblioteca à noite”, noite cujas luzes não vêm mais somente das lâmpadas nas ruas ou tetos, mas também das telas dos computadores onde os livros começam a se esconder... Noite em que as páginas raramente estrelam.
O leitor é um solitário, não somente ao ler, mas na sua condição de amante da leitura.