Antonio Luiz 31/01/2013
As guerras religiosas e as injustiças resultantes do cercamento dos campos (a apropriação pelos senhores feudais das terras comunitárias das aldeias camponesas) levaram o ministro inglês Thomas Morus, a escrever uma história sobre uma ilha supostamente recém-descoberta por um marinheiro português chamado Rafael Hitlodeu (“o tagarela”, em grego) que Américo Vespúcio, a serviço de D. Manuel I, o Venturoso, deixara para guarnecer uma fortaleza em algum lugar da costa da América do Sul.
Seu nome era Utopia – do grego “ou+topos”: lugar nenhum. O mirante ideal para além das misérias do mundo real, tão diferente dos estados europeus católicos quanto dos protestantes. Ali havia tolerância religiosa, não havia dinheiro ou propriedade privada, os metais preciosos eram destinados aos fins mais utilitários e a função das leis e do Estado eram proporcionar felicidade e abundância à população. O contraste revelava como o egoísmo, a ganância e intolerância geravam os problemas do mundo real.
A ilha de Utopia ficava em alguma parte do Pacífico, perto da costa sul-americana. Havia sido descoberta por um marinheiro português chamado Rafael Hitlodeu que Américo Vespúcio, a serviço de D. Manuel I, o Venturoso, deixara numa fortaleza da costa da América do Sul.
Tinha a forma de um grande crescente com 1.800 km de circunferência e 320 km de largura na sua parte mais larga (cerca de 210 mil km², mais ou menos do tamanho da Grã-Bretanha ou do estado de São Paulo), abrigando um mar interior com 800 km de circunferência (cerca de 50.000 km²) ligado ao oceano por um estreito de 18 km de largura, que abriga perigosos recifes e bancos de areia. Possuía pelo menos um rio navegável, o Anidro, numa extensão de pouco mais de 100 km entre o mar interior e a capital, Amaurota.
Cada cidadão era instruído na agricultura, na guerra e em algum ofício - tecelagem, carpintaria, alvenaria etc. A jornada de trabalho é de seis horas diárias. Os cidadãos dedicam parte do seu tempo livre ao estudo.
Utopia era uma federação governada por um conselho geral que se reunia anualmente em Amaurota, formada por três anciões de cada uma das 54 cidades-estado, todas muito semelhantes. Cada uma das cidades dividia-se em quatro bairros e era governada por um barzanés ou ademos vitalício, que cada assembléia municipal escolhia, por voto secreto, entre os candidatos que os bairros indicavam pelo voto popular. A assembléia podia destituir o barzanés por tirania.
Cada assembléia municipal era formada por cerca de 200 filarcos ou sifograntes, eleitos anualmente e não reelegíveis, que chefiavam e representavam os filos ou casas - agrupamentos de cerca de 30 famílias (cada uma com 10 a 16 membros adultos chefiados pelo homem mais velho) que compartilhavam uma grande habitação comum. Essas habitações eram trocadas entre os filos a cada dez anos. O barzanés era auxiliado por um senado de 20 protofilarcos ou tranibores, eleitos anualmente pelo povo, que funcionava como conselho deliberativo e tribunal de justiça e era supervisionado por dois sifograntes convocados por revezamento a cada reunião do senado.
Discutir interesses públicos fora do senado e das assembléias constituídas era passível da pena capital, mesmo para os altos magistrados. Toda questão considerada importante era apresentada à assembléia dos sifograntes, que a comunicavam às famílias que representam, deliberam entre si e depois levavam sua opinião ao senado.
Eventualmente, o problema era submetido ao conselho geral da ilha. Os cidadãos mais promissores de cada cidade eram dispensados do trabalho manual para se dedicar inteiramente ao estudo, formando uma pequena elite meritocrática dentro da qual eram escolhidos os embaixadores, os sacerdotes, os tranibores e o barzanés. Os sifograntes geralmente não abandonam sua rotina de trabalho, embora possam fazê-lo quando quiserem.
O sistema familiar era patriarcal. Antes de casar, os noivos eram autorizados a examinar os corpos uns um do outro para verificar defeitos físicos. Se algum fosse encontrado, o contrato de casamento podia ser anulado. Não havia dinheiro e, portanto, não havia amor pela propriedade nem ganância. Cada pessoa recebia de um armazém comum aquilo de que necessitava.
A simplicidade era importante. As crianças ganhavam jóias para brincar para que associassem tais quinquilharias com criancice e não se interessassem por se adornar com elas depois de adultas. Havia liberdade de religião e a função das leis e do Estado era proporcionar felicidade e abundância à população, mas também havia escravos - pelo menos 2% da população total. Eram utopianos condenados a trabalhos forçados por violar as leis do país - por cometer adultério ou por deixar sua cidade sem autorização, por exemplo -, prisioneiros de guerra ou estrangeiros adquiridos de países vizinhos. Eram encarregados das mais sujas e fatigantes tarefas domésticas e rurais, incluindo o abate de animais.
O contraste entre a Utopia de Morus e sua Inglaterra real procurava mostrar como o egoísmo, a ganância e intolerância geravam os problemas do mundo real. Utopia é em boa parte a Inglaterra de cabeça para baixo. Curiosamente, o marinheiro português Aleixo Garcia - sobrevivente de um naufrágio na costa de Santa Catarina em 1516, ano da primeira edição de Utopia - encontrou cinco anos depois, seguindo uma trilha indígena, um grande Estado que curiosamente tinha algumas semelhanças com Utopia, incluindo a ausência de propriedade privada e dinheiro e a abundância de ouro e prata: o Império Inca.