Ética

Ética Espinosa




Resenhas - Ética


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Erick 07/02/2021

O livro dos livros
É impressionante como com apenas oito definições (1. causa de si; 2. finitude; 3. substância; 4. atributo; 5. modo; 6. Deus; 7. liberdade; 8. Eternidade), Espinosa erige um sistema metafísico absolutamente consistente com seus princípios e completamente adequados ao modus operandi da natureza. Nenhuma obra penetrou tão profundamente nos mistérios da eternidade, com uma exposição tão objetiva e construída com tanta perfeição. É interessante notar como a noção de Deus só aparece na sexta definição, após causa sui, substância, atributos e modos, o que significa que é fundamental, antes de adentrarmos em questões teológicas, estabelecer um solo metafísico consistente e uma coerência vocabular que não permita enganos.
Efetivamente, ele está sempre falando de Deus, mas o vocabulário metafísico vai delimitando o sentido e extensão dessa noção, deduzindo da causa de si o ser necessário, o infinito e daí chegando na natureza naturante. Todos os nomes que querem dizer a mesma coisa mas que expressam vieses e abordagens distintas. Ao definir Deus como o ser dotado de infinitos atributos infinitos, está obviamente indo muito além de uma mera figura onipotente que cria e dota os indivíduos de vontade. O âmbito da definição é muito mais vasto, denso e, por assim dizer, rarefeito: Deus é produto, processo e produtor. A natureza não pode limitar-se como mera produtora, ela precisa subsistir em seus efeitos e no ato da expressão de sua essência naquilo que é expresso, seus modos.
Deus já está presente na primeira definição porque ele não tem uma causa, mas é objeto de sua ação, autoprodução: Deus é atividade, a Natureza é extremamente dinâmica e a conhecemos através de seus atributos, que também nos constituem. Após as oito definições da parte I do livro, seguem-se sete axiomas, que constituem o solo de toda arquitetônica espinosana. Lembremos que a exposição geométrica exige que se ponha no começo o que é mais importante e se deduza disso todo o resto. De fato, as partes II, III, IV e V estão fundamentadas na parte I e por isso esta constitui a parte central e mais densamente metafísica da obra. Por sua vez, toda a parte I fundamenta-se nas oito definições e sete axiomas: impossível subestimar a importância e significado desse conjunto enxuto de concepções na compreensão da filosofia de Espinosa, assim como é impossível avançar na leitura da obra sem uma relativa absorção do sentido exato de tais conceitos.
É sabida a influência do pensamento judeu na obra de Espinosa, principalmente de Maimônides e Leão Hebreu, mas pouco se fala dos autores árabes, estes muito influentes naqueles. Interessante notar como esses axiomas da parte I reverberam a metafísica do ser necessário de Avicena, talvez o autor central da filosofia árabe. As noções de ser em si e ser em outro estão na base do pensamento aviceniano, exposto na Al-Shifa de modo sistemático e com motivações quase teológicas mas um claro e distinto sentido metafísico de compreensão do que é existente por sua potência e virtude e do que é produzido em outro.
A parte I da obra é composta por 36 proposições, com suas respectivas demonstrações, escólios e o Apêndice, síntese e cerne dessa primeira parte. As proposições representam, por assim dizer, a epistemologia intuitiva espinosana. É apenas na parte II que ele descreve e elabora mais detidamente a teoria do conhecimento, mas como a exposição é geométrica, sabemos que o que é mais importante aparece primeiro na cadeia dedutiva e vai ganhando densidade significativa com o desdobrar da obra, o que significa que a epistemologia está inundada e pressupõe a metafísica da parte I e a emula.
As proposições são intuitivas, as demonstrações racionais e os escólios dialogam com a imaginação; não à toa é nos escólios onde há diversos exemplos mais concretos e uma linguagem menos ríspida. As demonstrações são os ‘olhos da alma’ justamente porque evidenciam o liame existente na ordem das ideias. A costura de fato das definições, dos axiomas e das proposições ocorre na razão, segundo gênero de conhecimento: as coisas estão aí para serem vistas, mas é necessário lentes bem polidas e um intelecto emendado para encetar um encadeamento coerente. As proposições, no entanto, são intuitivas, devem ser percebidas imediatamente e com toda a potência do intelecto: não basta uma imaginação ativa e nem uma sã razão para compreender as proposições espinosanas, pois elas são de outro gênero de conhecimento. Dificilmente uma proposição tem mais do que 3 linhas, pois a intuição tem um problema inato com a linguagem, muito mais afeita a imagem e conceitos.
É necessária uma linguagem nítida e um vocabulário extremamente limitado para transmitir tais expressões da intuição e cada termo conecta-se intimamente com os demais, não há espaço para conceitos indefinidos ou imagens vazias. As oito definições que estão na base das 36 proposições vêm desse espaço epistemológico denominado intuição, terceiro e mais aperfeiçoado gênero do conhecimento que se distingue da imaginação e da razão justamente por desconfiar da capacidade da linguagem que restringe a representar por imagens e conceitos. Se a verdade é índice de si mesma e não precisa de nada extrínseco para justificar sua validade objetiva (Espinosa descarta a tradicional noção de correspondência entre ideia e ideado), apenas a intuição possui a potência de penetrar nos segredos da eternidade.
Aliás, nessa primeira parte de uma metafísica rarefeita, cujo ar escapa a pulmões desavisados, Deus e a eternidade tornam-se objetos privilegiados, identificando-se mas não confundindo-se, até porque a eternidade é a oitava definição e Deus a sexta, o que significa que ambos são posteriores no trabalho intuitivo de postular um solo metafísico coerente. Antes de tentar compreendê-los, é necessário penetrar no sentido da causa de si, que abole a tola ideia de infinito potencial presente desde Aristóteles até Leibniz e que permanece numa certa tradição como expressão de uma má consciência e do intelecto intoxicado por imagens e conceitos discursivos. Também é necessário compreender o sentido da santíssima trindade espinosana Substância-atributos-modos para só então atingir os conceitos de Deus, liberdade e eternidade.
Obviamente, a partir da compreensão do entrelaçamento, interconexão e expressão recíproca existente entre a substância infinitamente infinita, os atributos infinitos em seu gênero e os modos expressando a multiplicidade e a singularidade, já podemos deduzir noções tais como a causalidade imanente (a causa permanece nos efeitos e não se separa deles), assim como as ideias de necessidade e limitação (a segunda definição já lida com a questão da finitude). Toda a parte I de sua Ética é uma tecitura dessas oito definições fundamentais, desdobradas nas aludidas 36 proposições com suas respectivas demonstrações e escólios.
Talvez as páginas mais subversivas do século XVII europeu e, portanto, de toda a filosofia ocidental. Provocaram fervor imediato entre seus contemporâneos. Duas reações anedóticas são famosas e dizem muito sobre o teor dessas concepções. O padre Malebranche foi procurado por um de seus alunos seminarista que estava lendo a Ética, desesperado pois tal obra estava abalando profundamente sua fé e queria um método de refutar a intrincada argumentação espinosana. A reação de Malebranche foi imediata, dizendo que o único método para não concordar com a obra de Espinosa seria deixar de lê-la. Reação típica para intelectos não-emendados. A segunda reação foi a de Leibniz, que conseguiu à revelia do autor os manuscritos da parte I e, preocupado com as inevitáveis implicações metafísicas, teológicas, epistemológicas e políticas de tal obra, correu para escrever uma refutação do espinosismo que, por vezes e muito em função de sua genialidade, soa como uma apologia. Leibniz não podia admitir a concepção de Deus de Espinosa pois ele vinha de uma sociedade cindida por conflitos religiosos – a ainda não unificada Alemanha – e seu pendor conciliador o impedia de ir até as últimas consequências do racionalismo seiscentista. Espinosa não tinha nem as limitações de Malebranche nem as de Leibniz e por isso erigiu uma obra absolutamente singular e subversiva no interior da tradição filosófica ocidental.
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