Katia Rodrigues 12/11/2021
"Para dentro do homem o homem caía."
Perdi a conta de quantas vezes este romance já me fez chorar, isso porque,
ainda que seja impossível demonstrá-lo, os leitores de O filho de mil homens sabem que regressam ao mundo real, ao terminar a última página, diferentes do que eram.
Nas palavras de dona Matilde: "...o que nos muda também nos aumenta. Queria dizer que obrigava a um crescimento interior e espevitava o engenho e a robustez para a sobrevivência".
Existem certos romances, muito poucos, que ao serem lidos são capazes de nos persuadir de que uma simulação da vida nos enganou ao nos comover como se tivesse sido uma realidade autêntica. Essa é uma dessas obras. Dessas que aparecem de tempos em tempos e que deslumbram a alma e o coração por sua delicadeza. Quase tão desconcertante quanto seu enredo são seus personagens. O livro tem um caráter fragmentário e assim podemos mergulhar lentamente ao interior profundo de Crisóstomo, Camilo, Isaura, Antônio... As histórias se formam e deformam, umas às outras, num caleidoscópio emocional.
"O Crisóstomo não lhe podia dizer saber sobre ela mais do que o razoável. Tinha vontade de lhe explicar que aquele era o seu lugar da praia e que, por loucura ou tremenda honestidade, falava sozinho com a natureza. Talvez ela também soubesse algo sobre a honestidade. Talvez ele lhe devesse dizer que estava tudo decidido, porque aquela manhã era uma pronúncia do destino. Achava o Crisóstomo, que seriam felizes para sempre. Ele disse: acredito que vamos os dois ser felizes para sempre. Ela riu-se. A Isaura nem sabia rir".
VHM fala sobre afeto, sobre amor, sobre as relações e as fragilidades humanas, por meio de sua já característica escrita encantadoramente poética:
"nunca limites o amor, filho, nunca por preconceito algum limites o amor. O miúdo perguntou: porque dizes isso, pai. O pescador respondeu: porque é o único modo de também tu, um dia, te sentires o dobro do que és".
A existência de um romance que é capaz de nos persuadir de que, modificados pela força de suas palavras, literalmente desertamos a realidade de nossos inglórios dias para habitar essa outra, faz com que sejamos tão injustos como para exigir de romances futuros não somente que sejam, como esse, excelentes, mas ainda algo mais.