Carlos.Santos 24/07/2017
CRUMB ENCONTRA DEUS
Quando eu soube que Robert Crumb, talvez o desenhista mais sacana dos quadrinhos, transformou o livro de Gênesis da Torá e da Bíblia numa graphic novel, imaginei o seguinte: Aqui está a obra de quadrinhos mais herege desde Preacher! Ledo engano. Crumb desenhou sim o Gênesis, porém o fez fiel ao texto bíblico. Fiquei meio desapontado quando soube desse detalhe, mas pensando melhor percebi que Crumb estava, mais uma vez, sendo o grande gênio da nona arte.
O Gênesis por si só é absurdo! Pra quê se envolver em polêmica com a Igreja quando se tem em mãos um texto onde temos um Deus ora misericordioso, ora rancoroso e na maioria das vezes um baita genocida? Além disso, há traições das mais diversas, assassinatos, perversões sexuais e negociatas absurdas, tudo isso mesclado com a jornada de um povo ao longo de séculos.
Crumb fez uma baita pesquisa para elaborar esse trabalho. No final do quadrinho, ele explica que é fascinado pela cultura suméria e suas lendas, de onde, acredita-se, tenha se originado os textos da Torá, obviamente "editados" pelos escribas israelitas. Todavia, é no visual onde se encontra o maior trabalho de pesquisa do artista. Desde as vestimentas, a arquitetura, as feições, tudo é minimamente detalhado. Aqui Crumb, pelo menos dos que eu vi até hoje, exibe seu melhor traço, em plena forma. Assim sendo, ler Gênesis torna-se uma tarefa extremamente prazerosa. A arte é tão soberba que você fica minutos apenas admirando uma página ou um quadrinho específico.
Quanto ao texto, ele acaba te envolvendo, pois como ficção, Gênesis é muito bem acabada. De Adão, passando por Noé, daí acompanhamos Abraão, Issac, Jacó e José. Tudo obviamente de modo bem patriarcal, onde às mulheres é relegado apena o papel de parideira, com raras exceções (Crumb acredita que na época em que essas histórias foram elaboradas existiam um patriarcado e um matriarcado que funcionavam em harmonia. Algumas das mulheres, como Sara, seriam uma espécie de sacerdotisas, com tanta ou mais influência do que chefe tribos e reis).
Sobre Deus, a frase: "Todos somos iguais perante seus olhos", não se aplica já que o Criador tem ciência - e aqui ele "contracena" com diversos humanos ao longo da narrativa - de que há sofrimento, escravidão e os mais diversos males a atingir a humanidade. No entanto, ele só abençoa seus escolhidos (Abraão, Jacó, José, etc) com riquezas, influência e anos de vida. Alguns indivíduos chegam a viver quase duzentos anos e conseguem procriar depois dos cem!! Ou seja, temos aqui uma obra que deve ser encarada como mera fantasia.
Encarada como ficção, Gênesis é um prato cheio, ainda mais ilustrada por um dos maiores desenhistas vivos, que aqui mostra-se no auge da forma. Obrigatório é pouco.