spoiler visualizarThiago Barbosa Santos 23/05/2021
As armas secretas
Livro contendo cinco contos escritos pelo autor argentino radicado na França, Júlio Cortázar. Os contos são primorosos na parte estética e na construção, uma marca registrada do escritor.
O primeiro conto é um dos mais conhecidos do escritor, genial. Conta a história de Luís, argentino que foi morar em Paris com a esposa, que se chamava Laura. Já vivia na França há dois anos. Disposto a se lembrar cada vez menos da Argentina, de tudo que deixaram para trás. Contudo, o passado ressurgia literalmente como um fantasma. Sempre que recebia as CARTAS DE MAMÃE, título do conto, tinha meio que a paz interrompida. A mãe contava da rotina em Buenos Aires, dos cachorros, e dizia que Nico havia perguntado por eles. Achou que a mãe fez confusão com o nome. Nico era o irmão dele que morreu de uma doença no pulmão. Ele era noivo, ou tinha um flerte com Laura, mas os dois se afastaram, ele ficou doente, Luís se aproximou de Laura, construíram uma relação, se casaram e Nico faleceu na noite de núpcias do casal. Duas semanas depois, partiram para Paris. Tentavam viver por lá uma vida calma, mas essa rotina sempre tinha a estrutura bagunçada com a carta de mamãe. Nas comunicações seguintes, ela insistia em falar que Nico havia perguntado por eles e pensava em fazer uma visita, passar uns tempos na Europa. A mãe estaria louca ou fazia aquilo para atormentá-los? Depois da morte de um filho e da partida do outro, vivia sozinha naquela casa grande e repleta de recordações. Mostrou as cartas para Laura, que também estranhou. Vira e mexe ela tinha pesadelos, aquele passado que deixaram para trás em Buenos Aires insistia em se fazer presente em Paris, ao ponto de encontrarem Nico nas ruas de Paris. Aí entra a genialidade de Cortázar em também confundir o leitor, misturar os fatos, realidade e alucinação, Nico se materializava ou era literalmente o fantasma do passado?
Em OS BONS SERVIÇOS, conhecemos a senhora Francinet, que é empregada na casa da madame Beauchamp. Já está com idade mais avançada, não tem a mesma saúde de anos atrás. A tremedeira tirou dela a agilidade para exercer algumas funções, foi ao médico e ele passou algumas restrições e cuidados. A patroa reclamava às vezes, pois pagava por hora e a empregada estava demorando mais do que o normal para executar as tarefas, mas confiava nela, tanto que a indicou para a madame Rosay para um serviço no domingo, para trabalhar em uma festa na mansão da mulher, que foi à humilde residência de Francinet para fazer a proposta. Ao chegar à mansão, ficou admirada com tudo, e logo depois foi encaminhada para o serviço, que era cuidar dos cachorros. Por que ela? Estranhou, mas foi. Apesar de entediante e cansativo, foi um trabalho tranquilo, os cachorros se comportaram bem e tudo funcionou. Depois que os principais convidados foram embora, ela saiu do quarto, foi elogiada pelo serviço e estava morta de sono e de fome, mas ninguém ligou para ela ou ofereceu comida. Até que apareceu monsieur Bebê, um artista do mundo da moda, que já estava um tanto bêbado, mas a tratou com muito carinho e atenção, até lhe ofereceu uma bebida, que ela aceitou de bom grado. O papo até foi animado, até que apareceram os anfitriões e a dispensaram de forma fria. Saiu da casa tarde, com o pagamento, mas teve que andar por mais de uma hora para chegar em casa, pois o último trem já havia passado. Tempos depois, recebeu em casa a visita do Sr. Rosay, que se disse satisfeito com o primeiro serviço prestado por ela e fez uma proposta inusitada para que a senhora se fizesse de mãe de um amigo da família que havia morrido. Teria de desempenhar esse papel durante o sepultamento, pois não havia nenhum familiar por perto. Quando chegou por lá, viu que o morto era o monsieur Bebê, aquele rapaz tão simpático e talentoso. Dali em diante, foi fácil ?representar?. O choro e o sentimento foram verdadeiros, pois havia gostado muito dele. O conto mostra como muitas vezes os ricos gostam de manter as aparências, e quase tudo entre eles acaba se tornando mesmo teatral, muitas vezes até artificial.
AS BABAS DO DIABO é o terceiro conto do livro. É bastante original e vemos à metalinguagem sendo explorada ao extremo. O que narrar? Com que voz? O tempo todo a narrativa confunde o leitor ora em primeira pessoa ora em terceira, criando um efeito interessante com a proposta do início da narrativa. A história é a de um tradutor franco-chileno que também é fotógrafo amador, mora em Paris. Em um raro dia de clima bom de novembro, ele saiu com a máquina. Achou um casal perto de um parapeito. Ela parecia mais velha, ele um rapaz. Às vezes parecia filho, outras pareciam um casal. Ele ficou observando-os atentamente. Viu como aquele a atuação deles mexia com aquele cenário antes quase que estático. Depois observou um homem dentro de um carro, lendo um jornal. Fitou novamente o casal e tirou uma foto. Eles perceberam e a mulher foi tirar satisfações, pedindo o negativo. O rapaz saiu correndo assustado. O senhor que lia o jornal foi em direção a eles, e o fotógrafo saiu apressado, mantendo a sua produção fotográfica e partiu em direção ao apartamento dele. Revelou os negativos e fez quase que um pôster daquela imagem. Ao contemplá-la, tem uma percepção bem diferente do momento em que a produziu.
O quarto conto é o maior de todos. Chama-de O PERSEGUIDOR. A história é narrada por Bruno, um crítico de música que é muito amigo de Jhonny, uma lenda do jazz, saxofonista. Bruno está escrevendo uma obra biográfica do amigo músico. Como muitas lendas, Jhonny era um cara perturbado, com problemas com drogas, já não leva mais tão a sério a carreira na música, prejudicada por aquele ritmo maluco dele. Faltando dois dias para estrear em uma casa, perdeu no metrô um saxofone. Eles pensam em uma solução para resolver esse problema. Durante o conto, vamos acompanhando o drama de uma estrela perdida, sem rumo, tal qual várias que vimos na vida real. A biografia é lançada em meio a uma das várias crises de Jhonny, entre o mergulho desesperado nas drogas e tentativas de suicídio. Ele sai da França e vai fazer outros trabalhos, até que Bruno recebe uma carta falando sobre a morte repentina da estrela do Jazz, um gênio de inteligência medíocre mas com um talento incomum para criar coisas incríveis na música. Houve tempo hábil para inserir a morte dele e fotos do funeral na segunda edição da biografia.
O último conto é o que dá o título do livro. AS ARMAS SECRETAS traz a história de um casal que vive uma dificuldade no relacionamento. A moça não consegue sentir prazer e se entregar ao rapaz, mesmo os dois passando dez dias isolados na fazenda da família dela. Aos poucos, fantasmas do passado vão aparecendo, traumas que ela viveu e que se reavivam anos depois após as investidas do namorado. No fim, descobrimos, através de relatos de amigos dela, o porquê dessa barreira, um abuso que sofreu, que parecia já ter se perdido no tempo, mas que volta para assombrar o relacionamento, e o assassinato que esses amigos cometeram com o abusador.