Vanessa602 05/06/2021Uma boa história não salva personagens ruins.Eu queria ter gostado desse livro, queria ter amado e favoritado. Eu tava namorando ele por anos e não hesitei em comprar assim que pude, apesar de ter custado caro em relação ao que eu geralmente me permito gastar. Mas ele acabou sendo o perfeito exemplo do que acontece quando todos os elementos de uma narrativa estão presentes e são relativamente bem feitos, porém o mais importante deles é deixado de lado...
1) Personagens.
Meu problema inicial foi a dificuldade de diferenciá-los fisicamente. Por algum motivo, minha mente misturava todos aqueles nomes e rostos parecidos (aliás, naquele contexto, não fica claro o motivo da falta de diversidade étnica do ambiente). Mas quanto mais eu avançava na história, mais percebia que não era só a aparência deles que me confundia, era sua caracterização como um todo.
Veja bem, apesar do cast principal até ter um pequeno rastro de personalidade (menos o protagonista, mas vamos chegar lá), todos esses sintomas superficiais de personalidade acabam nunca evoluindo para, de fato, conhecermos aquelas pessoas. A autora pode até dar a eles cores de cabelo diferentes, manias (algumas irritantes… estou olhando para você, Matt), classe social, histórico familiar, estilo e hobbies, mas se isso é tudo que sabemos sobre os personagens, ainda não sabemos nada sobre eles.
O protagonista, Harry, é o melhor exemplo desse fenômeno. O garoto não existe, ele não foi terminado, parece até que não foi começado; é uma página em branco protagonizando 400 páginas de história. Ele não apresenta qualquer motivação - o que faz com que o enredo e os outros personagens secundários o arrastem para todos os cantos -; não tem traços de personalidade bem definidos; cai no estereótipo datado do Escolhido (o protagonista sem sal que por algum motivo é o motivo de todo mundo) e, pior de tudo, não tem conflito interno, portanto também não tem um arco e não sofre alterações de crença interna. Eu esperei e esperei e esperei para ver se em algum momento eu iria finalmente compreender os desejos e os medos de Harry, mas, mesmo quando somos apresentados a um fato importante relacionado a sua família, em momento algum fica claro como esse fato está atrelado a construção de sua psique e como afeta sua tomada de decisões atuais. Harry Darwin podia ser qualquer pessoa e nada na história mudaria. Na verdade, quanto mais tempo de cena era dado a certo personagem, menos esse personagem tinha a oferecer. Talvez seja por isso que, de modo semelhante, os personagens mais interessantes da história eram aqueles que menos apareciam. Sério, os protagonistas aqui deveriam ser o Dalton e o David, porque o Harry e o Matt não servem nem pra pano de fundo de cena de multidão.
2) Relacionamentos e intimidade.
Não surpreende ninguém que personagens medíocres raramente formam relacionamentos interessantes. E aqui não é diferente. O casal principal é mais do que apenas um produto do resultado de personagens superficiais, é o produto da incapacidade de escrever uma evolução de intimidade.
Quando comecei a ler o livro (e até chegar a uns 85%) eu podia jurar que essa história era uma aventura fantástica com enredo principal nos acontecimentos da trama, e, por esse motivo, a falta de desenvolvimento do casal principal não podia ser julgado em comparação a um romance romântico, onde o casal é, por natureza, a trama em si. Porém, quando a história descarrilou para um romance total, dramático e épico… simplesmente não havia base para o relacionamento deles, já que tudo que os pombinhos fizeram o livro todo foi atender aos pedidos da tal trama fantástica.
Escrever a evolução de um relacionamento é escrever a evolução da intimidade das pessoas dentro dele. E essa se dá em passos lentos, é uma subida de degraus irregulares. Aqui o casal principal foi de desconhecidos para “eu morreria por você” de uma maneira extremamente artificial, superficial e apressada, apesar da história ter tido muito tempo e oportunidade para fazer isso (várias vezes eles se veem sozinhos um com o outro e tem chance de se conhecer melhor).
Em parte, culpo a prosa, que nunca se aprofunda nos detalhes, nos olhares, nos sentimentos de nenhum deles conforme o tempo passa. Ou seja, apesar de eles terem tido seus momentos, esses momentos, que deveriam elevar sua aproximação, são descritos com a mesma quantidade de especificidade que qualquer outro evento na história. Descobrimos que os pombinhos se amam apenas porque eles dizem isso um para o outro, mas o amor acaba aí. Esse tal amor nunca se traduz no cuidado, no toque, na progressão das descrições que eles usam na hora de pensar um no outro, nas palavras que escolhem dizer, no ritmo de suas conversas, que nunca se torna romântico ou doce ou brincalhão. Não há atração, não há química, eles não flertam, não se notam, não demonstram interesse e curiosidade na vida e complexidade emocional um do outro, mas, de alguma forma, se amam perdidamente?? Além de que, sério, eu adoro ler um romance jovem sobre primeira paixão e os sentimentos relacionados a ela, mas uma “História de Amor Verdadeira e Eterno”, com declarações e sacrifícios entre duas crianças de 15 anos? Autores modernos… menos, beeem menos.
Mas é uma pena, de verdade, porque se ao menos essas crianças fossem bem construídas, com anseios, medos e conflitos internos, isso tudo poderia ser relevado, até porque, como eu disse, a premissa da história é muito tocante e emocionante. Ou melhor... seria, se uma premissa criativa, execução boa e trama fechada salvasse uma história com personagens medíocres. Na minha opinião, não salva. Eu troco toda construção de mundo por personagens memoráveis e relacionamentos coerentes.
3) Outros detalhes que me incomodaram:
* No final do livro, a história abandona o uso de cenas como ferramenta narrativa e vira um relato descarado. Já estava difícil me conectar com as ações dos personagens, mas quando a narração desiste de vez de “mostrar”, o negócio vira um show de horrores de “contar”. (“Harry era um bom filho”, “A amizade dos dois se desenvolveu naturalmente, rápida, simples e harmoniosa. Era fácil serem amigos”, “Damon parecia uma boa pessoa”). Admiro os leitores que conseguem imaginar uma boa pessoa concreta sem saber as coisas boas concretas que ela fez, que consegue criar uma amizade natural do zero em sua cabeça sem ver uma amizade natural acontecendo na página. Eu posso até aceitar que essas coisas aconteceram, mas não consigo acreditar na honestidade das palavras se elas existem no vácuo, sem uma cena as ancorando a realidade.
* As personagens femininas só existem para servir ao enredo e são tão vazias quanto o resto do cast masculino, então nem sei se posso julgar esse padrão, que aparentemente se aplica tanto a homens quanto a mulheres. Porém não gostei de ver que elas só servem para possível interesse romântico, e assim que essa utilidade é descartada, elas são também.
* Achei a violência e o tom dos conteúdos sérios abordados no livro bastante superficial. Há varias menções e descrições de agressão, tortura, abuso e fiquei sentindo que elas só apareciam para temperar o conflito principal quando este estava meio parado e morno.
Enfim, o livro não funcionou comigo, mas se você gosta de ler sobre adolescentes dramáticos e sem personalidade com seus relacionamentos instantâneos chatos e amores eternos infantis sendo forçadamente colocados no centro do universo, esse livro pode agradar.