Marcos Antonio 24/01/2022
Considerações sobre o Brasil, a partir das crônicas bem-humoradas do João Ubaldo Ribeiro
A crônica é um gênero textual que trata de abordar o cotidiano, pela reflexão, pela crítica, ou pela ironia, a sátira. E se é retrato do cotidiano, podemos dizer que é, mais especificamente, retrato daquele cotidiano específico em que foi escrito, e assim é o “Rei da Noite” de João Ubaldo Ribeiro, de 2008, sendo, portanto, registro de um passado nem tão distante de nós, uma fotografia a partir daquele seu ponto de vista, de suas histórias, de seu posicionamento político, da sua vizinhança e de sua originalidade, como ele destaca no próprio livro.
É retrato de uma vida boemia, de carnavais, televisão, botecos e noites, muitas noites – daí o nome do livro. Mas é também um livro marcado por estranhamentos diversos, um deles sobre a possibilidade de as pessoas realizarem suas reuniões de casa mesmo, pelo Skype! E olha só onde viemos parar, hein? Comentários sobre o governo do PT (2008 = Lula), sobre a ministra Dilma Roussef, até sobre a ascensão das mulheres ao poder e a possibilidade de uma delas virar presidente também – coisa que João Ubaldo pode confirmar 2 anos depois. Daí a obra passa a ser marcada por muitas reflexões sobre o envelhecer, sobre saúde: caminhadas, dietas, e até sobre um tal movimento antivacinação etc, que vão coincidindo com o momento particular do João Ubaldo e seu ingresso na “terceira idade”. Tem uma escrita bem-humorada, gostosa, até fácil – exceto pela inserção proposital de palavras dificílimas, que ele confessa encontrar lendo dicionários aos domingos, ou pela formação de neologismos, que dicionário é pouco para tanta criatividade. Constrói assim a imagem de um João Ubaldo pernóstico e verborrágico, mas que não chega a ser desairoso, enfadonho e exasperante (isso! Ele faz exatamente isso o livro inteiro). Que não considero também, senão, um estímulo ao aprendizado e aumento do vocabulário. Recomendo então que a leitura seja feita com calma, papel e caneta na mão e disposição para pesquisar sempre que for preciso – aliás, eu fiz pesquisa também para todos os artistas, autores, atrizes e músicas que o livro citava. Tem garantia de boas risadas e de olhar o Brasil e nossa cultura de outros pontos de vista, isto é, se o leitor estiver disposto a mergulhar nessas histórias.
**Deixo até alguns trechos para vocês apreciarem:**
“E é tão bom comer capim, a qualidade de vida melhora tanto! Tenho amigos que encaram com a voracidade de um jumento pratarrazes de folhas exóticas, todas com o mesmo não-gosto. Eu mesmo já fiz isso e mal posso esperar o dia em que voltarei a comer tanto capim que talvez assuma a condição de ruminante depois de mais velho. Deve ser um barato, para o velhote, ficar num canto, ruminando umas boas horas seguidas, grande atividade para a terceira idade.” (p. 27)
“[...] lamentou que não se pode mais contar piada de português, piada de japonês, piada de negro, piada de homossexual, piada de anão, piada de médico, piada de nada. Mas piada de [*****] pode, queixou-se ele ressentido, todo mundo curte com a cara do [*****]. Por que tal injustiça? Isso o entristecia. — Não fique assim — consolou-o uma das senhoras presentes. — É simples, é porque não é minoria.” (p. 54)
“Vejam o que é a natureza. Das cerca de 800 milhões de formigas de asas e tanajuras que a água gera ao tocar em qualquer coisa, 750 milhões resolveram fazer assembléia geral aqui em casa, o bulício de suas asinhas diáfanas a musicar os ares, o colorido de seu elegante esvoaçar enfeitando a paisagem doméstica, tanajuras e formigas de asas suficientes para aterrar o aterro do Flamengo.” (p. 58)
“Era um ano começando, era eu ficando mais homem, eram perspectivas se abrindo — era, enfim, uma boa sensação ver um ano esvoaçando para nunca mais voltar e outro se abrindo em promessas, esperanças ou certezas, pois naquele tempo havia certezas, hoje finadas.
Bem, o futuro chegou, é isto aqui onde estou. De início, pensei que a vaga melancolia que me tem acometido era causada pelo que temo do que talvez venha pela frente. Pode ser isso, mas meu temor é misturado irracionalmente com esperança. [...]Foi o primeiro ano que não sinto chegar, mas sinto passar. Daí ter pensado nesse título bobo. Para uns é mais um ano que vai, para outros é mais um ano que chega. [...] É bom saber disso, é bom para a humildade que deve acompanhar a condição humana. Boas entradas e, para os encalacrados, boas saídas.” (p. 80)
“Sim, o mundo é perfeito, ou tem sido até começar a acabar”. (p. 91)
“— Mas ele não fala contra as mulheres e tem mulheres trabalhando com ele, inclusive no Ministério.
— É a política! A política é que obriga ele, ele não é burro e não vai dar essa mancada de falar contra elas. Mas duvido que ele não pense igual a mim, ele fala o que o povo pensa, essa é que é a verdade, é por isso que todo mundo gosta dele e só a baitolada intelectual e a imprensa é que não gosta. Por mim ele tá reeleito!” (p. 117)
“— Eu não me vacino! Eles são capazes de tudo! Eu tenho um grupo de estudos que já chegou à conclusão de que eles querem é resolver o déficit da Previdência! E a melhor maneira é botando um negócio na vacina dos velhos! Há dezenas e dezenas de opções ao alcance deles! O velho otário vai lá no posto, toma a vacina e aí tem um treco e abotoa o paletó rapidinho! Aqui pra eles, nenhum de nós toma a vacina!” (p. 134)
“Aí é que eu digo que tu é retrógrado. Tu não já leu nos jornais, não? Está desaparecendo o restaurante, agora o sujeito recebe tudo em casa e, se quiser, muitos restaurantes oferecem o mesmo serviço, com garçom e tudo. O restaurante que não se adaptar pode ficar lá desertinho a noite toda, que ninguém mais vai ser maluco de sair de noite, a cidade do futuro é outra, te situa, cara. [...]
— Desculpe, mas você não está confirmando tua inteligência. Ninguém precisa sair de casa. Tu sabe meu telão? Se eu quiser, eu ligo ele no meu computador e, com uma webcam instalada, converso com dois ou três amigos ao mesmo tempo, até as famílias inteiras, sem sair de casa. Sacou?
— Mas isso é uma maluquice. Quer dizer que acha que...
— Maluquice é a sua, que não vê que a realidade é outra. Tu manja o Skype?
— Eu sei, é um programa de computador pro camarada falar.
— E de graça! E é um programa que ainda pode ser considerado primitivo, ainda vai melhorar muito.” (p. 153)