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God's Bits of Wood Ousmane Sembène




Resenhas - Os Pedaços de Madeira de Deus


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Che 17/11/2016

OS PEDAÇOS DE MADEIRA DE DEUS (Les bouts de bois de Dieu, 1960)
Você já leu um livro de um autor africano, cuja narrativa se passa naquele continente? Já viu um filme nas mesmas condições? Se a resposta foi NÃO para pelo menos uma das duas perguntas, permitam-me recomendar um bom primeiro passo: conhecer a obra - literária e cinematográfica - do senegalês Ousmane Sembène, um artista que consegue ser genial em ambos os formatos. Sembène é um brilhante artesão tanto das palavras quanto das imagens, infelizmente muito menos (re)conhecido no Ocidente do que merece, motivo que me leva a redigir esse texto.

A título de curiosidade, o cineasta/escritor é mencionado tanto nos 1001 Filmes para Ver antes de Morrer (com os ótimos longas Ceddo e Moolaadé) quanto nos 1001 Books You Must Read Before You Die. No caso do segundo, é mencionado justamente com este "Os Pedaços de Madeira de Deus", que ele redigiu para publicação em francês, mas com várias concessões para termos em idiomas regionais de Senegal, a saber, bambara e ulof.

A narrativa do livro é baseada num evento real: a greve de seis meses da então nascente classe operária africana na ferrovia Dacar-Niger nos anos imediatos do pós-guerra. Passeando por um grande quadro de personagens em três cidades diferentes (Bamako, Thiès e a capital Dacar), conhecemos tanto os costumes e anseios daquele povo quanto as estratégias e contratempos na organização e duríssima manutenção dos meses de greve, além dos inevitáveis conflitos com a polícia, com os 'tubabus' brancos que administram a ferrovia e até os rachas internos do movimento - tudo isso imerso num contexto de fome crescente e incerteza quanto ao desfecho da greve.

Como se não bastasse, Sembène ainda encontra espaço para falar dos males do obscurantismo religioso (em especial o islamismo, dominante naquele país) como aliado de primeira hora da manutenção da desigualdade econômica, dos conflitos raciais inscritos em discriminação dos costumes locais (como a poligamia, usada estrategicamente pelos brancos para minar a luta dos trabalhadores) e, sobretudo, do feminismo.

Sembène tem imensa confiança na força e união das mulheres enquanto resistência à opressão - o que vai pegar em cheio quem for ler esse livro sem conhecer seu autor, mas não será surpresa pra quem, como eu, já conhecia sua obra na sétima arte, em especial Moolaadé (2004), seu magnum opus e canto de cisne. O melhor de tudo é que é que Sembène versa sobre todos esses assuntos sem jamais perder o fio da meada de uma narrativa com claríssimo recorte operário e economicamente de esquerda, o que se torna hoje ainda mais atual que quando o livro foi lançado, tendo em vista o crescendo de movimentos políticos de cunho estético/pós-moderno dentro da esquerda, em detrimento e prejuízo dos movimentos de afirmação diretamente econômica.

Na verdade, mesmo que você não se interesse por nenhum dos aspectos políticos, raciais e sociais retratados em "Os Pedaços de Madeira de Deus", o livro vai ser interessante de qualquer forma, já que, como dito no início, Sembène é um ótimo artesão das palavras. Só as passagens do imbróglio com o carneiro Sexta-Feira e a longa marcha das mulheres de Thiès a Dacar, momentos nos quais o autor espertamente usa comédia pra quebrar um pouco a pesada narrativa envolvendo fome e morte, por si só já valeriam a leitura do livro. Mas se você quiser observar os aspectos sócio-econômicos, será ainda mais desfrutável. Ainda por cima, tem um epílogo arrebatador, que me lembrou bastante o finalzinho de Ceddo (1977), o primeiro filme de Sembène que assisti.

Infelizmente, o livro é muito difícil de ser encontrado no Brasil e mais ainda numa edição em português. Provavelmente nunca nem foi publicado aqui. Só consegui ter acesso a ele porque achei uma edição de 1978 (vide imagem), publicada em Lisboa, num sebo de Recife cadastrado no Estante Virtual. Ou seja, não vai mesmo ser fácil achar. Mas se você se interessar pelos temas que o livro aborda, vale a pena escarafunchar por aí até encontrar.
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