jmrainho 06/02/2021
O mal não é banal
Hannah Arendt (1906-1975) foi uma filósofa, ensaísta e jornalista. Não gostava de ser chamada de filósofa. Também não era uma repórter latu sensu, colaborava com artigos para jornais. Uma dessas colaborações a tornou conhecida mundialmente. Mas tinha forma quase de uma reportagem. E foi polêmica: cobriu o julgamento do oficial nazista Adolf Eichmmann, após ele ser descoberto e preso na Argentina, em 1960. O trabalho foi para a revista "The New Yorker". Depois foi publicado em livro (1963) - "Eichmann em Jerusalém. Vejam a foto dele na capa do livro (link na resenha). Não parece um cara legal?
Sua descrição causou mal estar no mundo judaico porque muitos avaliaram que ela estava descrevendo um assassino de forma muito humana, e lembrando que ela era alemã e judia. Hannah na verdade falou a pura verdade. Eichmmann não era um monstro. Era humano, tinha família, era educado, bem formado.... Suas atitudes sim. Foi um dos mentores da "solução final" para os judeus, que gerou todo o holocausto. Exatamente: Hitler não agiu sozinho, tinha apoiadores, seguidores e gente ruim que lhe dava ideias loucas. O holocausto foi retroalimentado e cresceu em ódio dentro da sociedade cristã e bem educada da Alemanha. Os judeus também não gostaram de ver uma judia revelando que outros judeus e instituições judaicas foram submissas, cordeiras, e até de certa forma coniventes com o que estava acontecendo na Alemanha de Hitler. Não tinha como esconder. Todos na Alemanha sabiam das atrocidades, sabiam dos campos de concentração... mas muita gente jogou o pó para debaixo do tapete para ganhar dinheiro ou receber algum privilégio. Vejam a IBM e a VW. Mas isso é outra história...Hannah não colocou as mãos nessa sujeira. Por isso foi presa duas vezes e teve que se exilar da Alemanha. Saiu em tempo. Primeiro para a França, depois para os EUA, onde teve grande profusão de livros.
Hannah, no julgamento do "monstro" foi pura repórter naquele momento. Descreveu o oficial nazista como ele se apresentava: uma pessoa comum, que não se arrependia de nada, porque apenas cumpriu ordens, como ele insistia. E era bom em cumprir ordens. Estava cumprindo um dever cívico para o bem do seu país. E como todo mundo numa hierarquia, seja pública ou privada, tinha que obedecer ordens. Os juízes não se convenceram disso. Ele foi condenado à forca.
E esse fato marcou profundamente a vida posterior de Hanna. Ela trabalhou muito na questão da banalização do mal, aquela frieza de gente cumplice de mandantes e apoiadores de assassinos. Imagine ela vivendo hoje no Brasil, e vendo boa parte da população apoiando um genocida, alguém que coloca as armas acima da educação e que faz apologia à tortura. Para os padrões nazista, já seria um monstro. Mas pior são os Eichmmann brasileiros. Que apoiam e retroalimentam nas mídias sociais todo esse discurso bárbaro; são negacionistas da vacina que pode salvar vidas nessa pandemia; odeiam o que chamam de minoria, quem pensa diferente, os cientistas, os jornalistas, os professores e o pensamento crítico. Quem é mais culpado? Quem apoia cegamente ou quem "ordena"?
O livro "Verdade e política" aborda essas questão da hipocrisia política. A autora sabe que, conceitualmente, a filosofia relativiza a verdade. Os postulados filosóficos dizem que não existe verdade absoluta. Os fascistas e os políticos de mau caráter adoram essa interpretação. Os negacionistas mais ainda. O resultado estamos vendo...
Em seu livro, Hannah diz que a mentira sempre foi um instrumento legítimo para os políticos e a política em geral. Algumas vezes é ainda uma política de estado.
Platão dizia que a verdade não pode vir da massa nem a ela ser comunicada. Kant postulava que toda justiça (ou verdade) deve prevalecer, mesmo com o fim do último canalha". Leibiniz separava a verdade científica, matemática, da verdade de fato.
De Platão a Hobbes, escreve Hannah, ninguém tinha acreditado que a mentira organizada, tal como hoje conhecemos (época dela, diz, mas mais ainda nos dias de hoje), pudesse ser uma arma apropriada contra a verdade. Platão, certamente, tolerava uma certa dose de mentira circunstancial, destinada a enganar o inimigo ou aos loucos.
E mais ainda: como é aplicado no jornalismo, a opinião é uma coisa, verdade factual outra. E a opinião, a retórica, é a base de todos os poderes. Pensem nisso. Há uma grande diferença entre ser convencido por argumentos ou persuadido com opiniões mentirosas, como certas propagandas fazem. Ou aceitam opiniões que concordem com seus pontos de vista e faça ter sentimento de pertencimento ao seu grupo de mentirosos oportunistas.
E o que diz as religiões a respeito de tudo isso? Todas dizem para não mentir. Tem um mandamento bíblico a respeito. Mas...até igrejas mentiram e apoiaram Hitler até que a verdade incômoda surgiu na tela...O pedido de desculpas da Igreja Católica veio, mesmo tardiamente. Eichmmann não pediu desculpas. Ele não entendeu o que fez de errado.
site: https://ensina.rtp.pt/artigo/a-banalidade-do-mal-de-hannah-arendt/;