Toni 26/08/2019
“Mutações…” poderia muito bem ter se chamado “Deixa eu falar por que vocês precisam da crítica para lhes dizer o que é boa literatura”. A aparente crueldade desse começo se justifica não porque o livro seja ruim, mas por se tratar de um livro perigoso capaz de convencer o leitor de que existe uma literatura melhor e mais preparada para salvar o mundo, mas apenas alguns poucos eleitos capazes de percebê-la. O problema mora tanto nessa crença absurda quanto na pretensão de um panorama que analisa as obras de 1 MULHER e ZERO ESCRITORES NEGROS produzidas neste século.
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A história da literatura é prova de que em tempo algum escreveu-se melhor: escreve-se como sempre se escreveu—com uma tradição (oral ou escrita) por trás e um presente urgente e teimoso nas mãos. Não obstante, a busca de Perrone-Moisés por mutações na literatura contemporânea acaba se tornando a procura pelo que resta de uma Tradição que justifique a função do crítico, estando esta última respaldada, nas palavras da autora, “por uma diferença de qualidade”, detectável na “boa literatura”, “que se pode experimentar e demonstrar”. Faz pena que a pesquisadora não consiga cumprir a promessa, e suas mutações não passem de uma lista de favoritos—todos homens brancos e, mormente, do norte. Constrangedora, a propósito, é sua defesa de Vargas Llosa, um autor “maniqueísta” e “não muito original”, cujo “estilo influente” “não evita os lugares-comuns” para “prender a atenção dos leitores, administrando bem os suspenses”. Páginas antes, a autora já elencara essas mesmas características como traços da “leitura fácil”, “de mercado”, indigna do olhar do Crítico Literário (maiúsculo, claro).
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Predomina o estilo fatal-hiperbólico (Fulano é o último dos escritores capazes de blá blá blá). Quando se aventura por questões mais complexas, como o universo dos booktubers, a crítica literária e o ensino de literatura hoje, a autora mostra que não enxerga muito além de seu milieu, recorrendo a sentenças categóricas descontextualizadas (“Os críticos literários nunca foram estimados pelos escritores”).
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Não é possível dizer nesse ponto se a autora ignora que essas categorias há muito se misturaram (vários críticos escrevem, assim como muitos escritores fazem crítica), ou se é mais uma escolha política da pesquisadora, de seu elitismo fantasiado de preservacionismo bem-intencionado. Além disso, o corpus analisado (majoritariamente autores premiados, seja com o Nobel ou outros prêmios e, de novo, todos homens brancos) mostra sua opção por aquilo que já foi validado, não havendo novidade crítica alguma, apenas aquele velho chover no molhado e uma clara indisposição para o que seja ex-cêntrico. Mutações mesmo, nenhumas. Talvez na paciência e boa-vontade de nós leitores. Seja como for, é de partir o coração ver tanta erudição a serviço de uma “estética” sem ética.