D.J. Alves 19/12/2021
As Fanchonas que dominaram o mundo kkk
Literatura LGBTQIA+ Muito interessante. Nacional. Conta uma história de espionagem, ação, amor e fúria. Tão antigo e tão atual. Muito bom. Recomendo!
Comecei a pensar no mundo para o qual eu devia voltar, com sua pressa brutal e sua indiferença. Eu teria de me tornar um novo homem. Teria de andar de novo em companhia de meus captores e dos agentes de minha humilhação, teria de ser examinado por eles de forma crítica em busca de vestígios das cicatrizes que eles mesmos me haviam infligido. Eu teria de fazer algo em favor daqueles que eram como eu e por outros ainda mais indefesos. Eu teria de abandonar essa introspecção mortal e, em vez disso, me enrijecer. Eu teria até mesmo de odiar um pouco.
Sr. Bond, eles têm um ditado que diz: Uma vez é acaso. Duas é coincidência. A terceira é ação inimiga.
O passado é um confeito da memória: crave nele sua colher e escorrerá o recheio do presente; prove-o, e sentirá o gosto do futuro.
Exceto a visão daquela cidade. Santo Agostinho estava certo: quem não viaja não sai da primeira página, e por um breve instante, quase interrompeu tudo antes mesmo que começasse. Uma nova cidade é uma nova oportunidade: reinvente a si mesmo. Reconstrua. Retraduza. Anime-se, homem! Apenas os vivos podem se reinventar, e é cedo na vida para tanta melancolia!
Diz que, se isso acontece, é por aquela cidade ser o nó que une linhas invisíveis que se espalham por todo o globo. Que há algo em comum entre os negros levados à força da África para viver e morrer nas plantações de açúcar da América; entre os livres e cativos que se embrenham e sufocam nas Minas Gerais a lhe arrancar as joias debaixo da terra; entre os que cruzam e afundam pelo oceano atrás do óleo de baleia que ilumina as ruas das cidades; das famílias nos vinhedos do Douro, aos batalhões que sangram sob o calor sufocante do Oriente para fazer valer o comércio dos chás e dos temperos; todos os homens da Terra estão ligados um ao outro sem o saberem, fluindo como sangue pelas veias invisíveis das rotas de comércio, bombeando e fazendo pulsar a cidade que é o monstruoso coração do mundo: Londres.
Por toda a Europa, philosophes divulgam ideias inconvenientes: de que não se deve aguardar a felicidade somente após a morte, mas buscá-la em vida.
Escritores são uns mortos de fome, e Shakespeare precisava comer.
Érico, nesse caso, compartilha da opinião do conde de Oeiras, seu chefe: o atraso mental do reino era o resultado direto da educação pública ter sido deixada nas mãos dos jesuítas. Educando o povo apenas para a obediência passiva e não para a livre-empresa, formou gerações de beatos supersticiosos e ignorantes, os mantendo presos ao medievo enquanto o resto do mundo andava para frente.
Quando se trata de mover o mundo, a fé das gentes e a ambição dos reis não são nada comparadas à vontade de variar o prato. A culinária é o verdadeiro eixo que equilibra o globo.
nutrindo a crença arraigada de que a religiosidade do mais católico dos reinos europeus não é a causa de seu atraso e decadência? cada dia mais evidentes? e sim a chave para o futuro. Ou, em outras palavras, que tudo dará certo e melhorará, se as coisas não só pararem de evoluir mas, de preferência, que retrocedam um pouco. O mundo gira rápido demais.
O Brasil está abandonado, senhor; de lá tudo se tira, e nada se constrói. Nossa gente é deixada à míngua e se contenta com o que tem.
o fato é que o governo está quebrado, o ouro que havia se usou para a reconstrução após o terramoto, não há dinheiro, e se houver, é em Portugal que se necessita dele. O que o Brasil precisa é de colonos e cultivadores, não de artistas e fabricantes. É assim que sempre funcionou, é assim que sempre será.
se der ao povo alguns livros, irão querer mais; se lhes der muitos livros, logo começam a ter ideias e a querer escrever os seus próprios, e então escreverão peças, e peças necessitam de músicas, e logo estarão compondo baladas, canções e então...? Bate com o punho na mesa, irritado com o que considera uma obviedade a qual os mais jovens são incapazes de compreender.? Então haverá algo em comum unindo os habitantes de Salvador aos do Rio de Janeiro, os mineiros das Gerais e os colonos do Sul. Haverá histórias. E o que acontece quando pessoas passam a compartilhar histórias? Descobrem que possuem problemas em comum, dificuldades e anseios comuns, e toda sorte de sentimento inconveniente que as histórias geram, criando o maior perigo de todos: o senso de comunidade. E no momento em que os colonos brasilianos assumirem uma identidade comum, distinta dos portugueses reinóis, haverá dissidências, haverá revoltas.
A sorte, como Érico gosta de repetir, é o que ocorre quando a preparação encontra a oportunidade.
Pessoas como você e eu, que conhecemos o mundo, sabemos que ele tem possibilidades muito maiores do que a cabecinha medieval de gente como Martinho de Melo pode conceber. Mas estamos em posição de mudar alguma coisa? Você está? Eu não estou. E como ?gente como nós? lida com gente assim? Com máscaras. A vida é um baile de máscaras infinito, meu caro. Não é meu verdadeiro eu quem senta à mesa com o embaixador e suporta seus comentários tacanhos. É a máscara. E esse tem sido meu expediente aqui desde o dia em que cheguei a essa cidade, seis anos atrás.
modo, que se julga representar a letra hebraica Shin e possui o sentido de desejar ao outro uma vida longa
É assim que sempre começam, primeiro queimam livros, depois queimam gente!
Com literatura séria é outra coisa. Livro não é pão, não se compra todo dia. Um trabalhador ali ganha uns dez xelins por semana, o que equivale a uns mil e setecentos réis, e sustenta toda sua família com isso. Mas um exemplar de Robinson Crusoé custa cinco xelins (ou oitocentos e noventa réis), e o Tom Jones, que o editor espertalhão dividiu em seis volumes, sai a três xelins cada tomo (ou quinhentos e trinta réis). Assim ou se come ou se lê.
A literatura é, ao final das contas, um passatempo de abastados.
?Comprar? é mera consequência colateral; ?ir às compras? é como ir ao baile ou ao teatro, existe para ver e ser visto.
As placas, vê? Que peculiar.? Confesso que me escapa o que há de tão especial nas placas, sr. Borges? diz Maria.? Percebe que todas possuem o nome das lojas por escrito? Não um peixe indicando a peixaria, ou uma agulha para um linheiro, mas nomes. Letras. Significa que aqui todos sabem ler. Que coisa maravilhosa, uma cidade inteira que saiba ler.
Estavam em promoção na Feira das Vaidades, um título por metade do dobro
? E o que não é malvisto uma dama fazer? A reputação é o primeiro grilhão que se impõe à mulher, querido. ?Se todo homem nasce livre, por que toda mulher nasce uma escrava?? É de Mary Astell, um panfleto que li por aí.
Para ela, as roupas devem refletir três funções: aquecer quem as usa, estabelecer a posição social que se quer passar, e a mais importante, atrair o interesse de quem se deseja atrair o interesse.
?Mas você vive no centro do mundo?, observa Érico. ?O que dizer para quem está nas margens? Como falar da cobertura de confeitos para um escravo que vive de carregar barris de excrementos todo dia até o mar? Me parece cruel falar-lhes de coisas que nunca terão.?
Não há escravos como nas colônias, claro, mas há os assalariados.? Érico não entende o que ele fala. Maria explica que ali os artesãos já não costumam trabalhar mais em suas próprias casas ou oficinas; ?ao invés disso são aglomerados em galpões, subordinados a regras comuns e com horários ditados por um supervisor?. ?Tipo um feitor de fazenda??, sugere Érico. ?Sim, mas sem chicotes.? ?Ainda assim me parece opressivo.? ?É o futuro, querido?, complementa Fribble. ?O que só corrobora minha teoria: se não te permitem sonhar com confortos, mesmo que inatingíveis, de que serve a própria vida? O que será de nós quando formos privados da imaginação?
já conhecera sua cota de figurões, quase todos tão centrados em si próprios que esquecem o mundo ao redor.
Pois que, há cinco anos, Maria foi, como quase toda mulher de sua classe, obrigada pela família a ficar noiva de um homem que mal conhecia, muito mais velho, e com o qual mal trocara algumas palavras. Protestou: disse que só casaria com quem amasse, como nos romances. Seu pai, culpando-se pela leniência de tê-la deixado encher a cabeça com literatura, acusou-a de viver nas nuvens, de pôr em risco o nome familiar, de cometer o maior e o pior dos crimes, que é a desobediência paterna.
Essas moças ricas do interior, quando vêm à cidade procurar casamento, é porque já estão vendendo o leite sem a nata. Vamos, venha que vou te educar nos códigos secretos femininos.
Uma senhora pomposa rodeada de jovens interessados e interesseiros exibe o enorme diamante em forma de octaedro que pende do colar. Há grandes chances de ser uma pedra brasileira? arrancada das Minas Gerais por um escravo, enviada a Lisboa para pagar as dívidas da corte, indo parar nas mãos de algum joalheiro de Haia, que a poliu e incrustou naquele colar, vendendo para algum comerciante inglês, exposta nas lojas da rua Bond até ser enfim adquirida pelo marido, pendendo a rocha ancestral nas carnes murchas da galinha velha.
?Olhe à sua volta, barão. Não duvido que haja entre os aqui presentes uma cota que faça juz à dita nobreza de seus títulos, uma cota moral, como o senhor tão bem expressou. Mas quantos destes homens, em segredo, batem nas mulheres? Quantas destas damas já abandonaram seus bastardos em orfanatos? E quantos destes bastardos não estão aqui, oportunistas que são, à procura de uma viúva rica que os sustente? Covardes, mentirosos, ladrões e trapaceiros de toda sorte, cujas naturezas feias e más estão ocultas pela elegância de suas roupas e pela bela arquitetura deste salão, que no conjunto, é o que lhes confere os ares de nobreza, que lhes dá o verniz de aristocracia.?
?que a virtude se avilta quando se esforça demais para se justificar.?
foram pegos no flagra a cometer os próprios crimes que noutros acusavam, por fim reduzidos à sua real dimensão de chantagistas e hipócritas, a sustentar a máxima de que todo moralista é, no fundo, um reprimido.
Convenhamos que ninguém precisa de religião para agir de modo decente com o próximo. E se precisam é apenas por ilusão de poder: quem crê que, orando, possa ter o seu desejo atendido, alimenta a ideia de que pode controlar o mundo à sua volta e influenciar Deus.
Mas se não é uma ofensa para mim, que me importa o que se passa na noz seca que ela traz no lugar do cérebro?
? Mas há uma palavra na qual todos se reduzem, no final.? E qual seria?? Pó.
Sou um comerciante de livros, e para mim o melhor livro é aquele que vende.
É brasileiro, e se em sua terra natal não confiaria nos conterrâneos nem para pedir as horas, no estrangeiro surge este senso de fraternidade acolhedor.
Eu... eu não sou assim. Não quero ser. Eu sou como uma peça de teatro que nunca termina, sempre interpretando personagens conforme a necessidade, com um medo terrível de não ser convincente o bastante, ou de não saber a hora certa de mudar o personagem. Entende o que falo?
Érico possui um discurso na ponta da língua para homens assim, para momentos como este, mas é tomado por um tédio mortal, por ter que dar explicações a quem nunca estará disposto a compreender nada. Gente como Martinho de Melo quer apenas ouvir o eco de seus próprios pensamentos no vazio de suas ideias.
Que religião é esta que nós inventamos, que ousamos chamar de cristã, mas que se regozija na punição e despreza o perdão e a caridade?
? Quem você pensa que é para falar comigo nestes termos?? Eu sou aquele que faz o trabalho sujo de parasitas como o senhor, para que a sua alma corrupta e podre permaneça com a consciência limpa antes ir para o inferno.
? Garoto, ou você ama o seu país, ou o odeia. Com as leis do Estado, não se negocia. E pelo tom de suas críticas, para mim está bastante óbvio que despreza as tradições de nossa terra.
? Eu não a desprezo, pelo contrário. Só quem ama seu país tenta mudá-lo. É gente como o senhor quem o odeia; mal conseguem ocultar o desprezo profundo que sentem por sua própria gente, e bem estariam dispostos a eliminá-los todos, se não precisassem deles para servi-los. Mas vocês, no que lhes for possível, se dispõem a queimar cada música que não compreendem, cada livro que não pretendem ler, até eliminar tudo o que é dissonante, para reinar sobre cinzas. Eu mesmo me pergunto: o que gente como o senhor ama no seu país? A terra, o ar, o mar? O senhor ama um mapa? O senhor ama uma bandeira? Eles só valem alguma coisa enquanto significarem alguma coisa, e o que eles significam é a própria coisa que o senhor detesta: sua gente.
É incrível as coisas a que nos apegamos, não? É como nas mil e uma noites, sempre há mais uma história para adiar a morte.
Os personagens são sempre a mesma coisa: um herói, uma heroína, um vilão, um casal apaixonado e os confidentes de cada um.
Ela explica que a história se desenvolve quase sempre em três atos: o primeiro para expor os temas, o segundo para o desenvolvimento, e o último para o clímax.
Nem abre te sésamo, nem abracadabra: a mais poderosa palavra mágica é ?dinheiro não é problema?.
?Em Portugal, quando as moças vão fazer seus folguedos nos rios?, explica Maria, ?as amas sempre nos dizem, ?não tomai banho desnudas, meninas, ou virá voando o passaralho e lhes deixará com barriga?. Creio que seja mais fácil do que explicar de onde realmente nascem os bebês.?
O mundo é cruel, lhe dizem. Não, o mundo é indiferente, são as pessoas que decidem serem ou não cruéis.
estes loucos são como pássaros presos em gaiolas com a porta aberta. Por não saberem o que há do lado de fora, ficam a grasnar horrores reais e imaginários de um mundo que desconhecem exceto por pálidos relances, e logo passam a crer que aqueles que estão livres do lado de fora são os responsáveis por sua incapacidade de abandonar a própria prisão.
Eu? Eu sinceramente nunca me preocupei com a questão. Tenho certeza de que, qualquer que seja minha opinião a respeito, não irá alterar a ordem do mundo.
Terá o mundo surgido do ventre de Gaia, como acreditavam os gregos; de cada parte do corpo do gigante Ymir como diziam os antigos nórdicos; ou da palavra de Javé, como crê meu povo? Os hindus sustentam que o universo nunca teve um começo, consistindo de um fluxo contínuo, infinito e eterno, pois Vishnu, protetor de toda a criação, dorme no oceano formado pela serpente Sheshnaga; há tantos deuses quanto povos, e há o Deus único, porém distinto de outros deuses únicos, para cada um que assim o crê. Que apenas uma dentre tantas concepções seja a correta, em detrimento das demais, é impossível: ou todas as crenças são falsas (como crê meu irmão), ou todas são verdadeiras.
De todo modo, a meu ver é assim que se conquista respeito: fazendo o agressor temer a retaliação, fazer com que tema virar alvo do mesmo tipo de agressão que tanto se animou em praticar. Me parece uma realidade triste que a boa vontade que une uma sociedade só funciona com o poder de coerção da força.
?Não quero forçá-lo a nada, e mesmo que quisesse, ele é teimoso demais para tanto?, lamenta Érico. ?Me é uma agonia ver tanto talento se apequenar por receios tolos.?
?A Europa está sempre tentando salvar o mundo de si mesma, e empreende esforços descomunais que inevitavelmente a conduzem à própria ruína; nós brasileiros já vemos a ruína desde o princípio: apenas relaxamos e aproveitamos a viagem.
a razão é sempre a primeira que colapsa.
? Vocês ingleses tratam seus aliados muito mal ? resmunga na saída. ? Se servir de consolo ? sorri Fribble ? tratamos nossos inimigos pior ainda.
reconhecessem com alívio que no amor de um pelo outro encontraram um eixo sobre o qual agora se equilibram