Cesar270 20/06/2016
Numa época de revisão geral, em que valores são contestados, reavaliados, substituídos e muitas vezes, recriados, a crítica tem papel preponderante. Essa, de fato, é uma das principais características do Iluminismo, que, submeteram tudo ao crivo da razão. Entretanto, ninguém foi tão longe quanto Kant, que colocou a própria razão sob julgamento (antes de Kant o pensamento iniciava no Absoluto (“Deus”) e chegava ao homem, Kant inverte esse caminho e faz o homem pensar sobre si mesmo e sobre Deus partindo da sua finitude humana e chegando á infinitude absoluta de Deus...). Mais do que isso, com ele a crítica assume um sentido preciso e se torna uma atitude sistemática.
Radical, Kant não poupa a metafísica (que pretendeu construir uma concepção completa de Deus, a alma e o mundo). Nesta, a situação é de impasse. Proliferaram doutrinas, cada uma sustentando a sua “verdade”, mas que se perdem no dogmatismo, isto é, em raciocínios sobre ideias produzidas apenas pela razão, sem indagar se a própria razão tem capacidade para isso. Por isso, Kant recomenda aos que pretendem ser metafísicos: “É incontornavelmente necessário pôr de lado por um tempo seu trabalho, considerar tudo o que aconteceu até agora como não acontecido e antes de todas as coisas formular a pergunta: a metafísica é possível?”.
Os empiristas já haviam criticado a pretensão da metafísica, mas o resultado, como em Hume, foi o ceticismo. Problema de Hume ou Problema da Indução: Mesmo se um fato se repetiu muitíssimas vezes no passado, isso não significa que se repetirá amanhã, por exemplo, não é porque o Sol nasceu todos os dias até hoje que ele vai nascer amanhã de novo. Ou seja, para os céticos, a verdade nunca vai ser encontrada por indução (do particular encontrar o geral).
Kant supera o dogmatismo e o empirismo, que no fundo se reduzem a uma só, com sua famosa “revolução copernicana”. Assim como Copérnico, que para superar os impasses – a crise – da astronomia concebeu o modelo heliocêntrico, invertendo o geocentrismo, Kant inverte a questão tradicional da metafísica: em vez de procurar conhecer as coisas, é preciso examinar antes o próprio conhecimento e suas possibilidades.
Com essa inversão, ele propõe um campo de investigação, que denomina transcendental. Para Kant, “transcendental” refere-se ao que já está, desde sempre, contido no sujeito – no caso, o sujeito do conhecimento. Trata-se, então, de analisar esse sujeito na sua pureza, encontrar o núcleo desse sujeito, sua essência, isto é, sem os acréscimos que esse sujeito ganhou durante a vida.
O que é posterior (a posteriore) ao sujeito é experiência sensível (ou empírica), e, por isso, a investigação transcendental deve examinar o sujeito puro, a priori, isto é, anterior a toda e qualquer experiência. Tal exame é indispensável para verificar se o sujeito puro, por si só, é capaz do conhecimento a priori, independentemente da experiência, pois é exatamente isso que a metafísica pretende realizar.
O conhecimento formula-se por proposições ou juízos. Uma proposição do tipo “A é A” ou “A não é não-A”, que obedece tão somente ao princípio lógico de não-contradição, é um juízo a priori, pois não depende de nenhuma experiência. Mas esses juízos – que Kant chama de juízos analíticos – apenas analisam o que já estava dito. Nada acrescentam ao conhecimento.
Os juízos sintéticos, ao contrário, ampliam o conhecimento, pois realizam sínteses, isto é, a composição ou unificação de vários elementos. Assim, o juízo do tipo “esta flor é vermelha”, em que se acrescenta ao sujeito “esta flor” um predicado “vermelha” em que ele não continha. Nesse exemplo, o juízo sintético depende da experiência sensível e é, portanto, a posteriore. Mas esse conhecimento ampliado refere-se apenas a um sujeito singular (“esta flor”); não apresenta caráter universal nem necessário.
Assim, a famosa pergunta inicial da Crítica da Razão Pura “seriam possível juízos sintéticos a priori?” pode ser traduzida como “Haveria juízos universais e necessários, como os analíticos, e que também ampliassem o conhecimento, como os sintéticos?” Tais juízos seriam juízos sintéticos a priori, formulados independentemente da experiência empírica. São, no entanto, possíveis?
A matemática, por exemplo. Acreditou-se que sua universalidade e sua necessidade se devessem ao fato de serem todos analíticos. Mas, se assim fosse, não haveria nenhum acréscimo de conhecimento, o que é refutado pelo evidente progresso da matemática.
Uma proposição como “7 + 5 = 12”, é, sem dúvida, universal e necessária. Mas seria analítica? Ou seja, “12” já estaria contido na expressão “7 + 5”? Essa expressão designa a união de “7” e “5”, mas, por mais que seja decomposta analiticamente, sempre será “união de 7 e 5”, jamais “12”. Em outras palavras, “12” é acréscimo e independe de qualquer experiência sensível; a proposição “7 + 5 = 12” só pode ser um juízo sensível a priori.
Kant fornece outro exemplo: “A linha reta é a mais curta entre dois pontos”. “Linha reta” refere-se a uma qualidade e nada diz sobre a grandeza (quantidade). Há, portanto, um acréscimo (“mais curta”) à expressão “linha reta”, e isso é obtido de modo universal e necessário, sem que seja preciso medir empiricamente as distâncias de retas compreendidas entre infinitos grupos de dois pontos. Os juízos sintéticos a priori são, então, possíveis.
Para Kant, o conhecimento começa com a experiência, mas sem por isso originar-se nela. Isso porque a experiência pressupõe o sujeito como condição de sua possibilidade, sem o que a palavra “existência” nem teria sentido. O sujeito, então, deve apresentar capacidades ou faculdades que possibilitem a experiência e o próprio conhecimento, ou seja, o sujeito precisa conseguir conectar suas experiências com seu conhecimento prévio.
A primeira dessas faculdades é a sensibilidade, definida como “a capacidade (receptividade) de obter representações mediante o modo como somos afetados por objetos (...)”. Na sensibilidade, essas representações se dão de modo imediato pela intuição. Esta é empírica quando se referir às sensações, isto é, aos efeitos causados na sensibilidade ao ser afetada pelos objetos. Mas e antes disso?
“Mediante o sentido externo (uma propriedade da mente)”, diz Kant, “representamo-nos objetos fora de nós e todos juntos no espaço (...)”. Por isso, não é possível intuir um objeto a não ser representando-o no espaço, exterior ao sujeito (“fora de nós”). Mas o espaço não é fruto da abstração de dados empíricos, como “esta casa”: imaginando, por abstração, que “esta casa” não exista, resta o lugar, ou seja, “o espaço” que ocupava. Mas, para Kant, mesmo esse lugar pressupõe o espaço “fora de nós”. Sem isso, como representar os próprios lugares em que se situam os objetos da intuição empírica? O espaço, portanto, é a condição a priori de possibilidade da intuição empírica.
Raciocínio semelhante pode ser feito a respeito do tempo. “A simultaneidade ou a sucessão nem sequer se apresentariam à percepção se a representação do tempo não estivesse subjacente a priori. Somente a pressupondo pode-se representar que algo seja num mesmo tempo (simultânea) ou em tempos diferentes (sucessivo).” O tempo é, então, uma representação imediata que, como o espaço, torna possíveis as instituições empíricas, como tal, só pode ser uma intuição pura.
Da intuição ao conceito
Kant escreveu três “Críticas” que são alicerces da sua filosofia crítica. As “Crítica da Razão Pura”, “da Razão Prática” e “Crítica do Juízo”. Na primeira das Críticas, Kant afirma que o conhecimento só pode provir da intuição, que representa o objeto de modo imediato, e dos conceitos, com os quais as representações são pensadas. No conhecimento empírico, as intuições empíricas representam objetos, e os conceitos a que correspondem são unificados em juízos sintéticos a posteriori. Mas de onde provêm os conceitos na matemática dita “pura”, que abre mão da intuição empírica?
A resposta só pode ser uma: mediante a construção de conceitos. “Construir um conceito”, diz Kant, “significa apresentar a priori a intuição que lhe corresponde”. Tal intuição pura é possível, como prova a intuição pura do espaço e tempo. É também possível intuir partes do espaço, sem que para isso seja necessário “preenche-lo” com sensações. A partir dessa intuição, que é a priori, pode-se construir, por exemplo, o conceito de triângulo e, de intuição em intuição, proceder à síntese dos vários conceitos construídos, acrescentando novos conhecimentos sobre o triângulo.
Se, desse modo, os conceitos da geometria são construídos a partir da intuição do espaço, a “aritmética constrói seus conceitos de número através da adição sucessiva de unidades de tempo (...)”. Ambas as ciências, portanto, são constituídas de juízos sintéticos a priori, o que possibilita tanto o acréscimo de conhecimento quanto a universalidade e a necessidade de suas proposições.
Do conceito à experiência
O espaço e o tempo, como condições a priori de possibilidades da intuição empírica, constituem a receptividade que define a sensibilidade. São como receptáculos, ou seja, puras formas que previamente não continham nada. O conteúdo (ou a matéria), isto é, aquilo que corresponde à sensação, só pode provir a posteriori e é ordenado segundo certas relações de espaço e tempo. Por isso, o objeto só pode ser intuído no tempo e no espaço e constitui-se naquilo que Kant denomina fenômeno, isto é, “objeto indeterminado de uma intuição empírica”.
“Objeto indeterminado” porque aparece na sensibilidade como múltiplo: diversas representações são dadas juntas no espaço e no tempo, de modo sucessivo. Determinar o objeto é ligar (sintetizar), numa certa unidade, as diversas representações desse múltiplo. Na proposição “o calor dilata os corpos”, por exemplo, são ligadas num juízo.
Mas se o objeto dado na intuição empírica é indeterminado, então a síntese, que o determina, não pode estar nele. Nem na sensibilidade, pois é nesta que o objeto indeterminado aparece como tal, no espaço e no tempo. A síntese, portanto, pressupõe uma faculdade do sujeito do conhecimento cuja ação seja exatamente a de sintetizar.
Essa faculdade é o entendimento, que Kant define como “faculdade de pensar”. O pensamento é o conhecimento mediante conceitos, que são sintetizados por juízos. Estes não se formulam ao acaso, mas de acordo, com certas ligações e princípios da lógica, que, como tais, são dados a priori; são condições de possibilidade dos próprios juízos.
Kant, na “Analítica Transcendental” da Crítica da Razão Pura, enumera todas as formas possíveis de juízo segundo a sua função. Os juízos podem se referir à quantidade e são universais, particulares ou singulares; em relação à qualidade, são afirmativos, negativos ou infinitos e assim por diante. Tal enumeração é possível a priori, pois os juízos não apresentam nenhum conteúdo empírico e referem-se apenas à forma do entendimento.
Dadas as formas possíveis de juízo, pode-se também estabelecer a priori os possíveis conceitos que os juízos formulam. Esses conceitos – por exemplo, substância, causa, necessidade, realidade, etc. – são puros, e Kant os denomina categorias. Sem estas seria impossível “compreender algo do múltiplo na intuição, isto é, pensar um objeto dela”.
A proposição “o Sol aquece a pedra”, por exemplo, unifica as intuições empíricas “Sol” e “aquecimento da pedra”. A partir dessas intuições, apenas, só seria possível formular o que Kant denomina “juízo da percepção”: “o Sol brilha e a pedra aquece”. É preciso então que outro elemento, a priori, subordine as intuições para que sejam pensadas. No caso, esse elemento a priori é a categoria da causa. “O Sol aquece a pedra” implica uma relação de causalidade, e isso só pode ser pensado mediante o conceito de causa.
Isso esclarece a possibilidade da física como ciência. Ela é constituída a partir de categorias do entendimento e formula leis da natureza – por exemplo, “tudo o que acontece é sempre predeterminado por uma causa segundo leis constantes” –, que são juízos sintéticos a priori e, por isso, sempre universais e necessários. O múltiplo da intuição empírica é então pensado sob tais categorias e leis que o subordinam e sintetizam por uma ação do entendimento, a subsunção.
Em outras palavras, não é a experiência que torna possível os conceitos a que correspondem os objetos da física. Ao contrário, são os conceitos (puros do entendimento) que tornam possível toda a experiência. Propriamente falando, “experiência” não se refere à sensação causada quando a sensibilidade é afetada por um objeto, mas àquilo que se torna possível pelo entendimento, que é, por isso, seu autor. Do mesmo modo, “objeto da experiência” corresponde ao fenômeno – “o objeto indeterminado de uma intuição empírica” – que pode ser determinado e subsumido sob regras a priori e categorias do entendimento.
A possibilidade do conhecimento objetivo ou da objetividade do conhecimento é, portanto, dada pelo entendimento, que determina o campo da experiência possível e de seus objetos, cuja totalidade se chama natureza. A física é a ciência da natureza porque determina a priori seus próprios objetos, sobre os quais formula juízos universais e necessários.
Por tudo isso, o sujeito do conhecimento é legislador: ele torna possível a representação (no espaço e no tempo) do fenômeno; impõe, a este, determinações que o constituem como objeto da experiência, subsumindo-o a leis da natureza; e legitima o conhecimento desse objeto como universal e necessário. “A razão tem que ir à natureza”, diz Kant, “(...) não porém na qualidade de um aluno que se deixa ditar tudo o que o professor quer, mas na de um juiz nomeado que obriga as testemunhas a responder às perguntas que lhes propõe”. Também nesse sentido a razão é tribunal.
Ideias puras: simples ilusões
Mas se o objeto da experiência é apenas o que o sujeito constitui como tal, o que é, antes disso, o objeto em si mesmo? A resposta é impossível. Pois só se pode conhecer o que aparece ao sujeito como fenômeno, isto é, o múltiplo no espaço e tempo e que é subsumido sob categorias. A coisa em si – que Kant denomina númeno (do grego nounemon), em oposição a fenômeno – não pode ser conhecida, pois está escondida de toda a experiência possível.
Não seriam, no entanto, possíveis os juízos sintéticos a priori sobre a coisa em si? Essa é a pretensão da metafísica. E é o que ela faz, concebendo ideias que não se referem a nenhuma experiência. A capacidade de conceber ideias é a faculdade da razão propriamente dita, cuja ação é sintetizar as categorias do entendimento.
Para que as representações do entendimento sejam reunidas em uma unidade – pois sem isso não haveria síntese –, é preciso pressupor a condição de possibilidade de tal unidade, isto é, o sujeito do conhecimento. Mas qual seria a condição de possibilidade desse sujeito? Só poderia ser outro sujeito, mas já sem condições, um incondicionado, que subsiste em si e por si: uma substância, que a metafísica denomina alma. Ou então a causa – sob esse conceito, o entendimento liga um objeto a outro, possibilitando o conhecimento de um acontecimento; a partir disso, a razão concebe a série completa de causas e acontecimentos, isto é, o mundo. Finalmente, a razão também pode conceber uma condição incondicionada de todos os possíveis (alma ou mundo): Deus. Essas são as ideias puras da razão propriamente dita, e Kant as examina com minúncia na “Dialética Transcendental” de sua Crítica da Razão Pura.
Kant define a “dialética” como “uma lógica da ilusão”. De fato, a razão tem a “ilusão de tomar a possibilidade lógica do conceito (já que ele não se contradiz a si mesmo) pela possibilidade transcendental das coisas (...)”. É o que ocorre com a ideia metafísica de alma. O sujeito, que não se confunde com nenhum “eu” individual e empírico, é apenas a condição formal de conhecer algum objeto como substância, e, como tal, não pode ser substância. É forma (lógica) do conhecimento e não seu conteúdo; é sujeito transcendental.
Tal ilusão conduz também ao que Kant denomina “antinomias da razão pura”, em que os juízos se contradizem em teses e antíteses, sem que uma e outra apresentem falhas lógicas de raciocínio. Pode-se então afirmar racionalmente que o mundo tem um limite no espaço e no tempo, ou, ao contrário, que é ilimitado; que cada substância que o compõe reduz-se a partes simples, ou que tudo é composto; que nele há uma causa última sem causa – causa livre ou liberdade –, ou que o mundo é inteiramente regido por causas necessárias; que existe um ser absolutamente necessário como causa do mundo, ou que tal ser não existe. Do mesmo modo, todas as provas da existência de Deus enfrentam dificuldades semelhantes.
As ideias da razão são ilusões, pois pretendem transformar o transcendental em transcendente (aquilo que ultrapassa toda experiência possível). O transcendental – as formas da intuição (espaço e tempo) e do entendimento (categorias) – é apenas a forma da objetividade e não o próprio objeto; é vazio de conteúdo e nada significa em si. A ilusão da razão consiste em conferir a priori um significado a esse vazio, transformando-o em um objeto transcendente, fora do alcance da experiência possível. A metafísica, então, não é nem sequer falsa ou fictícia: é propriamente ilusão, esse vazio do não-conhecimento, que é produzido pelo uso legítimo dos conceitos. É por tal ilegitimidade que a metafísica deve ser condenada no tribunal da razão.
Mas, segundo Kant, “nossa capacidade cognitiva [de conhecimento] sente uma necessidade bem mais alta do que simplesmente soletrar fenômenos segundo uma unidade sintética para poder lê-los como experiência (...)”. Em outras palavras, o que deve ser condenado não são os metafísicos, que foram levados a conceber suas doutrinas por essa necessidade inerente à própria razão, mas o mau uso, ilegítimo, da razão, o que os levou à pretensão de constituir a metafísica como ciência.
As necessidades da razão, no entanto, não são necessariamente as do conhecimento, isto é, as de ordem teórica. Elas se situam antes na esfera da ordem prática, e a metafísica, no fundo, propõe certas regras morais. Por que então permanecer na ilusão da possibilidade de uma ciência, em vez de tomar as ideias da razão não mais como conhecimento, mas como ideias reguladoras da prática dos homens? “Crítica” também significa escolha: no caso, um novo ponto de vista para abordar a metafísica.