Marcelo Rissi 23/09/2022
O tribunal da quinta-feira (Michel Laub).
Fim da leitura de "O tribunal da quinta-feira" (Michel Laub).
Adiante, e em breves linhas, minhas impressões.
De partida: a técnica narrativa adotada é elogiosa. O texto prende a atenção do início ao fim, seja pela forma de construção do enredo (desenvolvido a partir de, e quase exclusivamente por, pensamentos do narrador), seja pelas reflexões e gatilhos que o livro provoca, seja, ainda, pela estilística admirável do autor, hábil na articulação clara, coesa e fluida de ideias, em texto limpo e acessível, permitindo rápida captação e compreensão do conteúdo transmitido.
Conforme algumas resenhas que li, muitos interpretaram a mensagem da obra num sentido de convite à [maior] tolerância e compreensão em situações de vazamento de conversas privadas, especialmente pelo risco de perda do contexto.
Parece-me, porém, que essa leitura - alcançada por algumas pessoas e validamente sustentável - é INDUZIDA pela perspectiva do narrador (José Victor), principal vítima do devassamento de sua caixa de e-mails (e, portanto, parcial em sua avaliação crítica da situação).
Enxerguei, na realidade, de outra forma (ou, talvez, apenas visualizei a mesma questão, mas sob outro ângulo): pareceu-me que obra quis trazer, como debate também válido, a ideia de AUTOCRÍTICA. A concepção de ética quando falamos de determinados assuntos ou exprimimos determinadas opiniões em conversas reservadas, com pessoas íntimas.
O nosso caráter é medido e deve ser moldado e regulado por nossas ações, atitudes e palavras quando - e sobretudo quando - ninguém está vigiando. Quando ninguém nos vê ou nos ouve. Esse é, essencialmente, o nosso ?eu?, nu, em estado natural, fora dos holofotes e do escrutínio público (na dimensão pública, não raramente assumimos apenas um papel e atuamos como personagem em detrimento de quem, de fato, somos).
Lembremos da frase atribuída a Epícuro: "Caráter é aquilo que você é quando ninguém está te olhando".
Nesse aspecto - de respeito, também nas manifestações em conversas particulares, às pessoas não presentes -, nota 0 a José Victor e a Walter. E, no ímpeto, considero compreensível - embora errada e temerária - a ação de Teca, nada comparável, porém, à gravíssima conduta dos dois outros personagens (comportamento cujos detalhes não vou revelar para não arriscar a emitir ?spoilers?).
A questão da perda do contexto em conversas vazadas, de todo modo, pode, de fato, ensejar açodamentos e conclusões precipitadas - e, assim, o opróbrio -, debate que o livro igualmente oportuniza validamente, como notaram alguns, embora, na minha visão, num plano mais secundário (repito: interpretação e impressão exclusivamente pessoais).
No aspecto jurídico - minha área de formação -, a obra dá ensejo a, pelo menos, dois debates (gosto desses recortes interdisciplinares, onde, por sinal, direito e literatura encontram campo fértil):
1. Os efeitos penais que repercutem em desfavor daquele que, sabendo-se soropositivo, mantém relação sexual desprotegida com outrem, ocultando intencionalmente tal fato.
Por coincidência, há alguns dias, li notícia que envolvia esse assunto. Uma pessoa que praticou conduta semelhante foi recentemente condenada por crime de homicídio doloso (intencional), tese bastante defensável, apesar das múltiplas interpretações jurídicas que essa situação usualmente enseja.
Essa digressão - a respeito das correntes de pensamento sobre o tema - exigiria maior aprofundamento técnico, alheio ao objetivo dessas breves notas. Vale, porém, a menção a um recente caso concreto.
Uma das fontes da notícia, com alguns detalhes do caso - preservado o sigilo legal - pode ser acessada por meio desse link:
https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2022/09/22/interna_nacional,1397076/homem-que-transmitiu-hiv-para-a-esposa-e-condenado-por-homicidio.shtml
Outra gravíssima situação - de disseminação intencional de HIV - que ganhou intensa repercussão em passado próximo diz respeito ao grupo intitulado "clube do carimbo". Para conhecimento e alerta, registro o seguinte link:
https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/04/07/mp-faz-operacao-contra-grupo-suspeito-de-disseminar-hiv-intencionalmente-em-sp.ghtml .
2. Os limites, éticos e legais, do humor é outro debate que a obra viabiliza. Eis um trecho que, para mim, representou gatilho para reflexão sobre o tema:
"(...) palavras significam posturas. Posturas significam ações. Ações significam consequências. O filtro da linguagem é o primeiro anteparo contra a violência, e há todo um vocabulário que legitima, como naturalização de conceitos construídos histórica e ideologicamente, a agressão às vítimas - sejam elas gays, negros, judeus, pessoas em posição social fragilizada, pessoas em situação emocional vulnerável".
Eis, aí, nessa curta, mas certeira citação, uma lição precisa, cirúrgica e atual àqueles que acham que o humor e a piada não podem sofrer limitações, éticas ou legais. Àqueles que, sob esse pretexto, disseminam discurso de ódio e destilam preconceitos. A palavra é a porta de entrada para a ação. Isso serve para o bem ou para o mal.
Esse tipo polêmica, habitualmente, ganha projeção a partir de situações concretas. Retomam-se, então, os debates, sempre intensos - e, em alguns casos, imprecisos -, sobre os limites do humor e do direito à livre manifestação de pensamento, de opinião e de expressão. Dos casos mais recentes, relembro aqueles envolvendo o "humorista" Léo Lins e o "influenciador" Monark.
Sem pretender qualquer aprofundamento ou maior tecnicidade na abordagem do assunto, mas apenas para esclarecimento: não há garantia constitucional absoluta. Um direito não pode violar, de forma desarrazoada, outro igualmente protegido. Ambos devem conviver harmonicamente e, no caso de conflito, deve-se preservar a proteção daquele de maior valor.
Não se pode, assim, declamar "humor" - e, invocando, o direito à liberdade de expressão, pretender proteção constitucional e legal - se, sob o pretexto da comicidade, há manifestação de cunho racista, misógino, preconceituoso ou, de qualquer outra forma, ofensivo.
Tecnicamente - e em termos singelos e enxutos -, fala-se em princípio da convivência das liberdades públicas e, ainda, em técnica de ponderação de valores (mecanismo de interpretação de normas constitucionais no caso de aparente colisão. Por exemplo: proteção da honra "versus" manifestação de pensamento).
De todo modo, não haveria a necessidade de imposição de limites legais e desenvolvimento de complexas técnicas de interpretação de normas se, em autocrítica e sensibilidade, o emissor de manifestação, de qualquer natureza, respeitasse mínimos contornos éticos, cujas dimensões ninguém, evidentemente, ignora.
Enfim, essas são, em síntese, as minhas impressões sobre a obra "O tribunal da quinta-feira".
Minha única ressalva: achei o fim um pouco abrupto, deixando algumas pontas abertas em relação aos dois personagens que se reaproximam no diálogo final (o que, por certo, foi intencional por parte do autor). Desejava, porém, como leitor, acompanhar o desenvolvimento do assunto que os trouxe àquela penosa e sensível conversa, algo que, na minha leitura, era relevante - talvez essencial - para a completude da narrativa (especialmente em seu desfecho) e, sobretudo, para melhor construção da personagem Dani, apenas superficialmente caracterizada na obra e, ainda, unilateralmente descrita pela visão, parcial e preconceituosa, de José Victor (personagem em favor de quem, particularmente, não estabeleci nenhum laço de afeição ou simpatia).
Ficará, de todo modo, ao campo da imaginação e ao espírito inventivo do próprio leitor o desenvolvimento desse diálogo final e, especialmente, a projeção dos efeitos decorrentes das revelações confidenciadas por José Victor a Dani (se é que, de fato, José Victor se encorajou a descortiná-las).
Típica obra cujo enredo, findas suas linhas, sobrevive, candente, no imaginário do leitor-espectador.
Excelente! Recomendo enfaticamente!