spoiler visualizarProf. Juan Carlos 05/10/2019
Apocalíptico ou integrado?
Escrito e publicado na década de 1930, A perspectiva científica (The Scientific Outlook, 1931) é um livro para “o senso comum esclarecido” e preocupado com o avanço da ciência e das novas técnicas na sociedade capitalista contemporânea.
A força do livro não está no esboço histórico-filosófico (parte I) nem na discussão dos problemas do avanço das técnicas científicas (parte II), embora sejam atuais e pertinentes. É na terceira e última parte que o filósofo inglês Bertrand (1872-1970) sintetiza os principais problemas e define suas posturas e hipóteses.
O ponto alto do livro está, a meu ver, no último capítulo. Após distinguir o conhecimento-poder do conhecimento-amor, o lógico, matemático e filósofo pai do atomismo lógico diz que o conhecimento-amor não deve ser desprezado, pois a predominância do conhecimento-poder (conhecimento que satisfaz o desejo de ser a causa de ilimitados efeitos) leva à tirania tecnocrática.
Russell descreve a trajetória de Galileu e seu conflito com a Inquisição em termos de conflito entre o espírito dedutivo e indutivo, explicados lógica e historicamente no capítulo II.
Após tratar de Newton e Darwin como pilares da ciência moderna, Russell se ocupa surpreendentemente de Pavlov, em detrimento de Freud.
Apesar de Pavlov ser fisiologista e de “não ter tentado conseguir uma perfeição estatuária na apresentação das suas teorias”, como Newton e Darwin, pois pertenceu a outra época, cabe a Pavlov a cientificação da Psicologia moderna. Mas com Einstein e o declínio do mecanicismo, Freud “devia ser também colocado entre os mais eminentes homens do nosso tempo”, apesar das diferenças entre behaviorismo e psicanálise.
Quando vemos, por exemplo, um grande físico “admitindo sem sombra de dúvida” a existência de extraterrestres ou o Estado subsidiando a “dança da chuva” indígena para solucionar o problema das secas, é preciso diagnosticar o ceticismo, pois “como nada é verdadeiro, recorremos a qualquer coisa”.
A ciência como busca do poder, afirma Russell, é triunfante; mas “a ciência como busca da verdade está sendo morta pelo ceticismo que a habilidade dos cientistas gerou.” Em seguida, Russell assevera que a substituição do ceticismo pela superstição não é um progresso, porque a superstição é retrógrada e desonesta, distorce a investigação e ignora as consequências das descobertas.
A segunda parte do livro é dedicada a ressaltar a influência da técnica na sociedade e o poder crescente do homem sobre a natureza. Destaca-se o capítulo “A técnica na sociedade”, em que Russell considera a questão da comunicação de massa (rádio e cinema).
A educação tradicional é criticada como um “grande método da propaganda pública” ao lado dos anúncios publicitários. Russell aprova a finalidade política de combater a anarquia, mas afirma que a educação tradicional é incompleta e prejudicial aos indivíduos. Parece que lemos as melhores críticas do Nobel Ensaios céticos nesta passagem.
Russell começa a descrever o Estado atual e o Estado futuro como o possível advento exclusivo do conhecimento-poder ou da tecnocracia nas sociedades.
A “organização de âmbito mundial” na esfera governamental e econômica (globalização não necessariamente capitalista) é considerada viável e positiva para a fundação da “civilização científica”.
O capítulo XV, “A educação numa sociedade científica”, parece ser o desenvolvimento do temor revelado pelo autor no capítulo I: que o processo de condicionamento de Pavlov seja aplicado nas escolas. Russell descreve uma educação utilitária e caricaturalmente pragmática, sádica e distópica.
Por um lado, a “civilização científica” gera “um emaranhado de características boas”. Por outro lado, “características repulsivas”. Russell propõe a manipulação científica controlada, isto é, o avanço da técnica e da ciência sem prejuízo da vida humana e da busca da verdade.
Por um lado, Russell destaca a evitabilidade do perigo e esperança no futuro; por outro lado, o temor da tirania. Ambos os lados são racionais. Não podemos assistir ao estado atual das sociedades sem críticas nem prever o apocalipse e abominar as tentativas de mudança. Não se trata da escolha entre apocalipse e integração, Platão e Aristóteles e, tampouco, entre Marx ou Locke.
Os dualismos filosóficos são reelaborados por Russell de maneira atual e contundente. Ele interpreta a filosofia dos pré-socráticos como um amor à natureza e a filosofia de Aristóteles e dos modernos (predominante) como uma enganação ou traição deste amor, pois o conhecimento da natureza íntima do mundo inanimado foi transferido da amada para o amante, isto é, do objeto para o sujeito e da natureza para o observador.
Mas a amada tornou-se um fantasma, transformou-se em Esfinge (mistério). Os homens recorreram aos deuses, mas eram a mesma Esfinge decifrada aos olhos de Édipo. A amada tornou-se um esqueleto, isto é, algo seco e sem vida nas fórmulas dos físicos. Então os físicos recorreram aos deuses, mas não foram correspondidos. Em seguida, desiludiram-se de ser amantes e passaram à tentativa de se tornarem tiranos da natureza. Infelizmente, é o que observamos até hoje. Russell apresenta uma leitura psicológica de toda a História nesta alegoria. A tirania se manifesta na crueza e no sadismo. Na tirania, dizia Aristóteles na Ética a Nicômaco, não é possível a amizade ou o diálogo entre os homens e entre os homens e a natureza.