Claudio 07/11/2021
É bruxaria?
Existe magia na literatura. Magia real, verdadeira, bruxaria braba, daquela que nos transporta para outros mundos, outros tempos e outras vidas. Não é sempre que um autor é bruxo.
Neste livro, primeiro que li do autor, Valter Hugo Mãe me fez viver como um senhor português de 85 anos em luto pela perda da companheira que foi sua esposa por 50 anos, enquanto se adapta a vida em uma casa de repouso.
Bruxo, dos magníficos esse Mãe!
Além de toda empatia ao nos mostrar o mundo pelos olhos dos mais velhos, os seus medos e as suas fraquezas, a riqueza das suas vidas, o efeito de suas memórias sobre as suas ações e manias, as relações familiares, a íntima relação com a morte (ou mais especialmente com a proximidade a ela), tudo isso de forma realista sem deixar de ser poético, o autor também traz um bela reflexão sobre o passado português dos tempos da ditadura de Salazar, sem passar pano para ?os bons fascistas? e, ao mesmo tempo, apresentando o efeito da própria repressão da ditadura sobre os aspectos mais íntimos do português comum e o resultado disso sobre a sociedade de hoje, muito caracterizada por sentimentos de descrença, desconfiança, inferioridade perante a Europa, saudosismo de um passado mítico e um catolicismo ainda profundo.
Para quem for ler, em um primeiro momento o fato do autor não usar nenhuma pontuação além de vírgulas e pontos, não usar letras maiúsculas, não diferenciar de forma clara qual personagem fala o quê pode dificultar e, por isso, recomendo ler o livro com o espírito de quando estamos num grupo grande de amigos com todos falando ao mesmo tempo: você pode não ter certeza de quem disse o que, mas a história fica toda detalhada em sua cabeça.
Resumindo: Um livro perfeito! Recomendo sem pensar duas vezes, pois não só o enredo é intrigante como as reflexões que dispersa são potentes.
Três trechos que destaquei a seguir:
?a coragem tem falhas sérias aqui e acolá. e nós, que não somos de modo algum feitos de ferro, falhamos talvez demasiado, o que nem por isso nos torna covardes, apenas os mesmos de sempre. os mesmos vulneráveis e atordoados seres humanos de sempre. tanta cultura e tanta fartura e ao pé da morte a igualdade frustrante e a mesma ciência?
?o que justifica a vida de um homem depois dos oitenta anos quando perde a mulher que amou e com quem partilhou tudo durante quase meio século. quarenta e oito anos. o anísio fitou-me e respondeu-me, é mais fácil falarmos da ditadura, senhor silva?
?o salazar foi como uma visita que recebemos em casa de bom grado, que começou por nos ajudar, mas que depois não quis mais ir-se embora e que nos fez sentir visita sua, até que nos tirou das mãos tudo quanto pôde e nos apreciou amaciados pela exaustão?