Lucas 26/08/2022
Materialismo, falsidade e abandono: os podres da Paris do século XIX mais uma vez expostos por um dissecador literário
Poucos livros sintetizam tanto uma proposta literária individual do seu idealizador quanto O Pai Goriot (1835), uma das obras-primas do francês Honoré de Balzac (1799-1850). A tal proposta literária nesse caso têm nome: A Comédia Humana, compêndio de praticamente todas as obras de Balzac (quase uma centena de romances) é um dos maiores e mais profundos colossos literários já produzidos pela humanidade. Nesta "enciclopédia", Balzac busca descrever todos os aspectos sociais (costumes, estudos filosóficos, etc.) da sociedade francesa nas turbulentas primeiras décadas do século XIX, período na qual a França vivia os reflexos da sua revolução ocorrida em 1789.
O Pai Goriot, situado dentro da "categoria" estudo de costumes d'A Comédia Humana, é uma obra que simboliza bem este caráter descritivo que todas as obras do compêndio possuem, mas também do famigerado estilo balzaquiano, extremamente realista sem ser cru ou árido, mas cirúrgico em seus apontamentos. Para Balzac, sua narrativa se baseava na descrição e não necessariamente no "romanceamento" ou discussão social daquilo que compunha o escopo do que ele está contando. É, neste sentido, um papel complementar ao que o seu conterrâneo e amigo Victor Hugo (1802-1885) representava para a literatura francesa.
Para quem já conhece esse estilo, O Pai Goriot é como um complemento, um novo enfoque para determinadas relações sociais que constroem a sociedade francesa, matéria-prima d'A Comédia Humana. Mas aqui, diferente de outras obras significativas como Ilusões Perdidas (1843), o foco do autor está em dissecar as anomalias existentes na alta sociedade parisiense. O ponto de partida disso está no título: Goriot era um viúvo, pai de duas filhas e que possuía um amor devocional por ambas. Entretanto, pais e filhas vivem em dois mundos diferentes: enquanto Goriot habita uma humilde pensão (tocada pela sra. Vauquer), as suas duas filhas (Anastasie de Restaud e Delphine de Nucingen) são casadas com senhores de grandes posses. Diante de tal realidade e da sociedade em si, as duas mantém uma relação quase que exclusivamente material com o pai amoroso. Desse choque, Balzac explora muitas cenas comoventes e que dimensionam o erro que por vezes cometemos ao esquecermos de nossas origens, bem como de desdenharmos de um dos mais puros sentimentos que um ser humano pode desenvolver: o amor de um pai pelo seus (as) filhos (as).
Mas Balzac, como dito, fundamentalmente tem um papel descritivo: os momentos de emoção inevitavelmente surgem, mas fica nítido na narrativa traços de uma preocupação maior do autor em descrever os reflexos mais amplos de uma sociedade materialista, elitista e calculista, a qual acabou moldando Anastasie e Delphine. Desse modo, o pai Goriot do título não é o protagonista da obra que leva o seu nome, apesar de que ele é o âmago de todas as principais cenas do romance. Mas assumir isso não quer dizer que o papel de protagonista caia no colo de outro personagem.
Esse papel de protagonista é coletivo. Fatalmente, o leitor pode acabar concluindo que o papel de protagonismo é do estudante de direito Eugène de Rastignac. Um típico personagem balzaquiano (é muito presente a semelhança dele com Lucien de Rubempré, protagonista de Ilusões Perdidas), ele é um jovem com enormes ambições, sustentado pela família interiorana que vive em Paris e visando não as oportunidades acadêmicas que essa cidade oferece, mas apenas um sucesso rápido, sustentado por obscuras relações pessoais e amorosas. Na maior parte do tempo desprezível, Rastignac é o elo que junta e interliga o núcleo do pai Goriot a este mundo de relações falsas que forma Paris.
Outro olhar poderia estabelecer a própria pensão da sra. Vauquer como a protagonista da história. É uma visão válida, sobretudo porque Balzac nas primeiras linhas descreve o ambiente da pensão e, principalmente, seus habitantes. Além de Goriot e Rastignac, há a sra. Vauquer, dona da pensão, seus criados Sylvie e Christophe; a misteriosa sra. Couture e a bela Victorine Taillefer; e os imprevisíveis Poiret e srta. Michonneau. Com exceção de Taillefer, todos estes tipos, na maior parte do tempo, trazem uma sensação de asco, seja pelo materialismo exacerbado ou tão somente por ideias vazias.
Mas em matéria de asco nada se compara a Vautrin, outro integrante da pensão e que é de uma vilania poucas vezes vista. Irritantemente eloquente, ele inferniza a vida dos outros hóspedes e arquiteta um acontecimento horrível, que traz ao livro um clima de "novelão" mesmo, dominante na última metade da obra. Como personagem, ele é execrável, mas Balzac empregou-se dele para exemplificar que não é apenas na alta sociedade de Paris que existem estes tipos: a falsidade não escolhe classe econômica para ser um elemento comum. Mas, não por isso, Balzac esquece de ilustrar a torpeza com que essa alta sociedade parisiense vive: num mundo de ostentação, futilidades e riquezas, os adultérios, casamentos arranjados, entre outras deturpações são tratadas com uma normalidade inacreditável. É uma sutil crítica às falsidades que uma classe dita superior pratica livre e descaradamente.
O Pai Goriot é um livro preciso e sutil, com um tom predominantemente triste, mas crítico. Sem subdivisões (são quase trezentas páginas na edição da Penguin sem capítulos, mas com muitos diálogos), sua leitura se arrasta por muitos momentos, mas agiliza-se em outros: as últimas cinquenta páginas precisam ser lidas num único fôlego, pois é onde se concentra aquele clima de "novelão" supracitado. Balzac, um incomparável gênio literário, traduz assim nesse romance o seu caráter de dissecador social, jogando na cara do leitor, de forma equilibrada (sem muitos floreios e sem crueza), as grandes hipocrisias sociais que a sociedade francesa do início do século XIX testemunhava.