Julia G 07/07/2017O Terceiro TestamentoImaginar um thriller apocalíptico que envolve uma série de suicídios em massa, alucinações, pessoas que presenciam fatos históricos acontecidos há centenas ou milhares de anos e um quê de matrix é um pouco difícil, mas essa é a base de O terceiro testamento, de Christopher Galt. Meio louco, eu concordo, e por isso comecei a leitura sem saber o que esperar dessa mistura, mas não é que deu certo?
O livro, de capítulos curtos narrados sempre em terceira pessoa, intercala a visão do psiquiatra John Macbeth, que tenta avaliar com olhos profissionais as alucinações que estão se espalhando por todo o mundo, e outros personagens, espalhados por todos os cantos do planeta, que presenciam alguma experiência causada por esse fenômeno alucinatório e que passam a ver o mundo a partir de outra perspectiva.
"- Não sei não, John, mas algo de muito esquisito está acontecendo por aí. Uma peste ou coisa assim. Uma peste da mente. - Casey fez uma careta e enquadrou a frase em aspas simuladas com os dedos no ar. - As pessoas andam apavoradas. Eu ando apavorado com tudo isso. Hoje mesmo tive de pular de volta para a calçada porque não vi um carro que se aproximava. Se o motorista não tivesse buzinado, eu teria sido atingido. Mas, depois que o carro se foi, fiquei me perguntando se ele tinha estado mesmo ali. As pessoas parecem confusas, sem saber em que acreditar. Descobrir a causa do problema é, a meu ver, o grande desafio psiquiátrico do século."
Essa construção, que altera o ponto de vista com o passar dos capítulos, dá dinamicidade ao texto, já que não se prende exclusivamente ao núcleo central da história. Por outro lado, essas passagens se tornam bastante cansativas em alguns momentos, visto que, depois de acompanhar as visões de dois ou três desses personagens aleatórios e entender como ocorria essa anomalia, eu estava mais interessada em me centrar no cerne da trama e entender o que estava causando tudo aquilo de uma vez.
No entanto, esses saltos de perspectiva se estenderam até o fim do livro e toda vez que aparecia um novo personagem, batia um desânimo de começar o novo capítulo desse até então desconhecido. E o pior de tudo foi perceber, ao final do livro, que eles não são mesmo tão importantes e não fariam muita falta se não estivessem presentes. Devo destacar que esse foi um problema que se apresentou para a minha leitura, e foi mais motivacional do que do texto em si, porque assim que começava a ler, eu mergulhava inteiramente na nova trama e esquecia minha birra, inclusive com vontade de ler um pouco mais sobre cada uma delas. Outro leitor poderia achar essas passagens mais interessantes que todo o resto, aliás.
Fora esse problema, a leitura de O terceiro testamento foi bastante interessante. Mesmo com capítulos curtos e uma escrita ágil, o livro tem um enredo denso, por vários motivos. Primeiro porque envolve aspectos psicológicos intensos, afinal Macbeth é psiquiatra e, além de se autoavaliar constantemente, ele discorre minucias sobre doenças mentais, os eventos alucinatórios e as possíveis causas originadas da mente.
"- Recordo-me de estar aqui há quinze minutos. Recordo-me de estar aqui antes de você me olhar. Mas recordo-me disso agora. Essa recordação de existência foi gerada nesse momento. Talvez a memória presente seja real, não a existência passada. O fato de eu me lembrar de estar aqui há quinze minutos não significa que estivesse mesmo."
Além disso, há frequentes referências a conceitos abstratos da física, da tecnologia como um todo e mesmo da filosofia, o que insere uma grandes reflexões a cada diálogo. Particularmente, isso foi o que mais me interessou no livro, mesmo porque a linguagem utilizada para explicar esses conceitos eram simplificadas e claras, mesmo para os iniciantes dessas áreas. Nesse aspecto, a trama me lembrou um pouco de Matéria Escura, uma das melhores leituras que fiz em 2017, e utiliza até as mesmas referências, como a experiência do Gato de Schrödinger.
O livro consegue ainda trazer uma construção psicológica complexa de todos os personagens - que são muitos -, o que enriquece a trama e permite um vínculo entre o leitor e a história. É interessante ver que todos eles são consistentes e ricos, pois mesmo em poucas páginas o autor conseguiu dar forma às suas características mais imateriais. Fica claro o conhecimento de Galt nas mais diversas áreas, já que não seria possível construir uma trama tão complexa se não tivesse instrução nas matérias discutidas na obra.
"'Talvez eu devesse me tornar um escritor', pensou. Macbeth, o psiquiatra, sabia que as narrativas de ficção e os distúrbios mentais brotavam da mesma semente: escritores eram, em grande medida, tipos esquizofrênicos não patológicos. Quanto maior seu grau de esquizofrenia não patológica, mais apresentavam tendência ao pensamento mágico e mais criativas eram suas obras."
Quase ao fim da leitura, descobri que Christopher Galt é, na verdade, um pseudônimo do autor Craig Russel. Só vim a conhecer essa informação quando Craig Russel curtiu e retweetou meu tweet sobre o livro, e eu fui pesquisar quem seria ele. O autor, que escreve romances policiais, parece ter criado o pseudônimo para assinar as tramas que fogem a esse gênero, embora O terceiro testamento seja a única até o momento. Preciso confessar que me senti importante, rsrs.
O fechamento do livro é surpreendente, irônico e sugestivo, e nos faz questionar até que ponto o que vemos é ou não real - mesmo as coisas mais simples do dia a dia. Talvez não seja uma leitura para todos, pois exige raciocínio constante para acompanhar a história. Para quem quer uma leitura mais aprofundada, tenho certeza de que será uma ótima opção.
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