Henrique Fendrich 18/09/2020
Antes de começar a fazer esse meu "ano de literatura asiática", eu não fazia ideia de que o García Márquez tivesse tantos discípulos assim no outro lado do mundo. De fato, não é o primeiro livro de realismo mágico feito no oriente que me pego lendo. E Eka Kurniawan capta bem vários dos trejeitos, sejam de estilos ou temáticos, do velho Gabo.
Trata-se de um daqueles romances trans-geracionais que flagram o desenvolvimento de uma cidade específica, seus personagens típicos, suas lideranças, seus conflitos, seus amores e suas guerras (para nós aqui deste lado do globo, é interessante aprender mais sobre o impacto da Segunda Guerra sobre a Indonésia, país do qual pouco ou nada sabemos).
Soma-se a isso o elemento sobrenatural que geralmente associamos à parte mágica do realismo e tem-se um material que, bem conjugado, pode até dar caldo, ainda que não represente nada de essencialmente novo.
E, de fato, no primeiro quarto do livro o autor se saiu tão bem que, por um momento, eu cheguei a pensar que ele iria roubar o posto da Isabel Allende, autora de "A casa dos espíritos", o melhor livro do García Márquez escrito por outra pessoa.
Essa expectativa, contudo, não se cumpriu, pois, a partir de certa altura, eu achei que ou a estratégia começou a cansar ou a mistura dos elementos não foi exatamente tão boa como poderia ser.
Até entendemos que, a exemplo do que o Gabo faz, seja necessário abrir várias "abas" para contar a história particular de cada personagem que aparece na história, mas acho que no livro de Kurniawan isso tirou um pouco do foco da narrativa.
A realidade é, de fato, composta por várias trajetórias particulares que, por não sei quais acasos, se cruzam entre si e dessa interação nasce a nossa experiência de vida, mas talvez não fosse necessário que tanta gente tivesse a sua história esmiuçada.
Se aparecia um coveiro na história, eu já suspeitava: "Pronto, agora ele vai abrir um capítulo só para contar a história desse coveiro" - e, de fato, algum tempo depois, lá estava o capítulo voltado ao coveiro.
Também me incomodou um certo cacoete de estilo, no qual os personagens estavam sempre dizendo ou fazendo coisas propositalmente originais, como que para causar um efeito calculado no leitor. O fato de os personagens serem frequentemente os mais bonitos, os mais feios, os mais valentes, os mais conhecidos, também não me pareceu tão verossímil (mas aí eu preciso me lembrar que se trata de realismo mágico, não de realismo realista).
Enfim, há uma unidade no livro, explicada já bem no final, mas ela não chegou a me convencer de que os recursos do escritor tenham sido dispostos da melhor maneira - apesar do incrível primeiro quarto do livro.
O livro da Isabel Allende, portanto, permanece em seu posto.