Euflauzino 11/03/2019Das coisas que formam o vazio
Joca Reiners Terron é destes autores que ficam martelando em minha cabeça, seja por indicação de amigos, seja por resenhas que leio cada vez mais entusiasmadas. Quem é Terron? Escritor, poeta, editor, entre outras coisas. Alguém que rompe seu caminho no peito, sem se importar com ferimentos seus ou alheios. Tanto vigor já lhe rendeu o Prêmio Literário da Fundação Biblioteca Nacional em 2010.
Então nem preciso dizer de minha imensa curiosidade quanto sua escrita. Noite dentro da noite (Companhia das Letras, 464 páginas) me seduziu de imediato. A capa representada por um sumidouro, isso mesmo, algo que me mete um medo danado. A primeira vez que me deparei com um sumidouro, dentro da Gruta de Maquiné, foi assustadora. Nunca mais me esqueci da sensação de pavor de cair dentro dele e me perder para sempre em uma queda sem fim. Além disso, o subtítulo me intrigou, está lá em letras um pouco menores: “uma autobiografia”. Quem não quer saber um pouco mais sobre quem escreve?
A escrita de Terron tem certo hermetismo, algo a ser revelado. Possui parágrafos longos que muitas vezes merecem uma releitura, porém decifrá-los é prazeroso por demais, é como descortinar um véu, como responder corretamente a uma esfinge. Terron reinventa sua biografia, realidade e fantasia se entrelaçam e sendo ele um artista na acepção da palavra me faz lembrar as palavras de Paulinho Moska: eu “falso” da minha vida o que quiser.
Partindo de uma premissa simples, Terron tece um livro repleto de camadas sobrepostas feito cebola e poucos comem uma cebola inteira sozinhos, comemos parte dela, outros comem também e talvez a união de todos formem o todo, formem novamente a cebola, mas ela será diferente, será a ideia que temos dela e não mais ela própria.
Durante uma inocente brincadeira de esconde-esconde, um menino de 11 anos bate fortemente com a cabeça em uma coluna, morde a língua, convulsiona e entra em coma.
“Acertou a nuca com força no concreto ainda fresco, cercado por tapumes. Teve convulsões e mordeu a língua. Seu calcanhar esquerdo cravou no cimento como a ponta seca de um compasso que hesitasse em girar no mapa, o pé direito chutou loucamente o vazio, parando apenas ao apontar a lua meio apagada no céu e você ser socorrido. (...) Na manhã daquele dia você deixou de ser você, nem sequer tinha completado doze anos e passou a ser outra pessoa. Com a dentada, sua língua ficou bífida como ferrão de aranha, a língua de uma serpente. Uma voz amputada. Alguém contou a você, alguém de quem você não se lembra mais, que depois que se sente, o gosto de sangue nunca sai da boca. (...) Aquele foi o começo do Ano do Grande Branco.”
Com o acidente o menino fica mudo, perde a memória e passa a tratar a si mesmo como outra pessoa. Sem passado, sem família, sem amarras, um vazio. O vazio é tão grande que o ano de seu acidente passa a ser chamado de o “Ano do Grande Branco”. Após o acidente ele é cuidado por pessoas que dizem ser “seu pai e sua mãe” a qual ele trata apenas por “rata”, porém não se lembra de nenhum dos dois, são completamente estranhos.
Resta ao menino ir montando lentamente o quebra-cabeça que decifrará quem na verdade ele é, sua identidade. Para isso contará com a ajuda de um narrador na segunda pessoa que oferecerá inúmeras peças a serem encaixadas e é aí que reside a genialidade de Terron – o tal narrador é Curt Meyer-Clason.
Clason é um personagem real, tradutor para o alemão de autores do calibre de Guimarães Rosa, Machado de Assis, Jorge Amado. Preso pela polícia do Rio Grande do Sul acusado de espionagem para o III Reich, responsável pelo afundamento de navios brasileiros. Encarcerado por cinco anos toma contato com a literatura brasileira e se apaixona. Ele vai soprando informações ao menino e posteriormente ao adulto, forçando sua memória a reconstruir seu passado ou inventá-lo, tanto faz.
É com este enredo intenso, alucinado e inventivo (que comparo a Twin Peaks) que Terron passa a limpo grande parte da história de nosso país e por que não dizer de sua própria história. Curva de Rio Sujo é um microcosmo do Brasil, onde se repetem situações constrangedoras e muitas vezes violentas.
site:
Leia mais em: http://www.lerparadivertir.com/2019/03/noite-dentro-da-noite-joca-reiners.html