jota 09/12/2013Amiga amanteFazes-me Falta é o típico romance que pode levar certo tipo de leitor a quebrar uma regra: a de que as coisas certas a se fazer com os livros é lê-los e conservá-los cuidadosamente. E não se deixar levar em momento algum por alguma passagem ou trecho irresistível (e neste livro eles são inúmeros) e então sacar um lápis ou uma caneta e sair sublinhando trechos, fazendo anotações nas margens, colocando aqui e ali sinais diversos ou pontos de exclamação, etc.
Consigo resistir a tudo isso e mais sem qualquer esforço, mas tenho de reconhecer que o livro de Inês Pedrosa é uma tentação muito grande para o leitor sair da linha, pela quantidade de frases poéticas e evocativas que apresenta, pelas belas expressões e palavras empregadas em todo o texto, enfim, por todas as suas várias qualidades. Tudo isso servindo ao tema principal, uma história de perda e solidão (mas também de paixão e amizade) contada em duas vozes - uma delas a da mulher que morreu, a outra, a do companheiro que permanece.
Também é certo que o leitor vai precisar de um dicionário á mão, interrompendo diversas vezes a leitura para inteirar-se do significado de uma porção de palavras desconhecidas (ao menos para mim; palavras portuguesas, com certeza): noante, pataniscas, gangolino, aldrabice, poçal, osga, moralina, [índio] folharudo, e [parede] esventrada são apenas algumas; há muitas outras, muitas mesmo. Bem, aprender é sempre bom, não?
E ao lado de outras belas palavras usadas sem parcimônia pela autora é possível até mesmo encontrar vários palavrões ditos pelo casal de protagonistas, quase todos conhecidos dos brasileiros, exceto “catano”, como nesta frase: "Que sentido faz a morte de uma rapariga de 37 anos, catano, roída pela própria posteridade?" C......!, dizemos nós.
De todo modo, copiei outro trecho, este bastante poético e que penso ser capaz de até mesmo cativar algum pequeno ou grande príncipe de Saint-Exupéry, que estivesse a navegar pelos idílicos céus lusitanos pintados pela autora: “Sempre vivi em teoria, assustada com os buracos negros entre fulgurações - muito mais do que tu. Assim nos encontramos agora - eu, filha de um Deus desleixado, tu, fervoroso praticante das distâncias impensáveis. Não sei pensar sem ti."
Bem, apesar de toda essa coisa amorosamente solene de que apenas amantes altamente espiritualizados ou intelectualizados parecem capazes de exprimir em pensamento ou por escrito, para mim esses tais “buracos negros entre fulgurações" e esse “fervoroso praticamente das distâncias impensáveis" mereciam fazer parte de alguma antologia de poesia em prosa, sem dúvida. Se é que já não fazem, além-mar.
Continuando nessa linha, nós, leitores, mortais comuns, jamais seremos capazes de dizer coisas simples de maneira tão elaborada como fazem os protagonistas de Fazes-me Falta, conforme este trecho em que a morta diz para o amigo amado: “(...) os planos eram o teu departamento. Depois de um almoço bem regado, eu ficava a giboiar, tu subias à primeira nuvem e ficavas a planar.” Isso é arte ou artimanha? Em Portugal se giboia com gê e no Brasil com jota, pelo jeito.
Não encontrava num livro overdose poética assim desde a leitura de Gilead, de Marilynne Robinson, poucos meses atrás. Esta, uma obra bem comportada que, no entanto não cansa tanto assim o leitor e que parece dizer sobre a vida em geral e sobre nós mesmos em particular tão ou mais do que Fazes-me Falta. Livro merecedor de cinco estrelas (não há nota 4,7, 4,8, não?), muito mais pela admiração que provoca no leitor do que propriamente pela estima que se poderia manter por ele ao longo de muitos anos.
Lido entre 05 e 09/12/2013.