de Paula 20/02/2021
O maior autor brasileiro, desde o início
Este volume contém 4 romances da primeira fase do Machado e por isso, farei as resenhas de cada romance apartado. Gostaria de citar como ele sempre referenciava em suas obras, principalmente nestas, a figura do ser subserviente, a pessoa que vivia à mercê de alguém da burguesia e por isso, qualquer posicionamento seu, por mais sincero que fosse, seria mal interpretado, como se houvesse apenas interesse de sua parte, por ser de classe social inferior, não fosse humano e nem tivesse direito aos sentimentos cativos à espécie. Quem for ler, atente-se a esse ponto importante e como tem completa relação com o Machado, que era um homem negro que viveu dos favores de sua madrinha e se casou com uma mulher "fora do seu alcance", por isso, provavelmente, este era o tema central dos seus primeiros romances, como um grito de protesto sobre a própria vivência.
Ressurreição
O primeiro romance escrito por Joaquim Maria Machado de Assis é Ressurreição - como o comparo muito a Tolstói e vice e versa, fico espantada como ambos tenham um livro homônimo e o brasileiro foi o primeiro romance (porque Machado até então escrevia contos) do autor e o russo foi o último, sabe, coincidências da vida.
O livro faz parte da sua primeira fase, também conhecida como romântica, por isso, os traços mais ácidos e evidentes na tríade realista não são tão perceptíveis, embora estejam presentes na obra.
Com todo o seu jeitinho, Machado escreve críticas mordazes nas entrelinhas de um romance de cunho romântico, onde o médico Félix, novo na burguesia carioca, se vê apresentado, após um tórrido relacionamento com Cecília, antiga amante, à uma viúva, recém chegada na corte, que possui fortuna, juventude e beleza. Após algum tempo de resistência, por inúmeros motivos do homem que não se entregava a relacionamentos duradouros, ele e a viúva Lívia se vêem apaixonados, o que faria qualquer leitor inclinado a um romance suspirar.
A narrativa se desenrola em períodos de guerra e paz, onde o protagonista possuído por ciúmes doentio vira e mexe se afasta da sua amada, o que os deixa sempre em constante agonia, exceto pelos períodos em que conversam e resolvem os maus entendidos. O problema dessa história é que o diálogo do casal resolveria muita coisa, assim como tornar o relacionamento público. Além disso, existem duas pessoas do convívio que são apaixonadas pelo casal e vivem a sacrificar seus sentimentos em prol do casamento e futuro de ambos. Muita confusão, inimizades e inveja permeiam o relacionamento, até o ápice da história que hoje pode ser um pouco "bobo", no entanto, a obra se passa em 1872, uma época em que tudo o que é descrito é muito plausível.
O interessante é que Machado como bom observador da alma humana, consegue fazer com que sua obra seja atemporal. Sou suspeita a falar, pois amo tudo o que esse homem escreve, mesmo que não goste de certos personagens (um abraço ao querido Bento Santiago!), acho sua escrita de muito bom gosto e simples de entender, por suas características atemporais. Por esse ser o primeiro romance, acredito que foi uma estreia extraordinária, afinal, já se vê muito do que ele mostraria anos depois em sua forma e estilo.
O grande segredo de ler Machado é perceber as mensagens das entrelinhas, porque enriquecem a leitura. Um exemplo é o trecho: "delineava uma vida independente das escravidões sociais, vida exclusiva deles, cheia de todos os prestígios da poesia e do amor." Podemos ver que ele crítica a vida burguesa e sua redoma, enquanto muitos sofrem sem serem vistos pela sociedade privilegiada, a saber, os escravos, uma crítica sempre presente nas obras machadianas, no mesmo formato citado, no meio de uma situação importante, sem alarde, sempre vivo e presente. Não é meu livro favorito do autor, no entanto, tem seus méritos, principalmente por ser em terceira pessoa, onde o Machado conversa muito com o leitor, ajudando-o a se situar na história, o que é algo único e especial deste escritor brasileiro de quem tenho muito orgulho e admiração.
A Mão e a Luva
Meu romance "romântico" favorito do Machado, sem dúvidas, é A Mão e a Luva. Com toda a certeza, é uma narrativa muito inteligente e inovadora para sua época de publicação, em 1874. A personagem principal é uma heroína para época e permanece sendo uma das mais fortes personagens femininas da literatura machadiana, minha favorita de longe (desculpem-me Helena e Captolina).
A história começa com Estevão sofrendo de amores por uma jovem, chamada Guiomar, antes dele ir para São Paulo, estudar direito e se tornar doutor. Ele reclama para seu amigo, o burguês Luís Alves, homem ambicioso e dedicado aos próprios interesses, que não entendia a lamentação do amigo. Entre idas e vindas, nos deparamos com uma mudança drástica na vida da Guiomar, que é adotada pela madrinha e agora é herdeira de uma baronesa, quando antes estava estudando para se tornar professora de meninas. Além disso, havia uma grande confusão na corte sobre óperas e teatro, na qual Estevão era um grande fã e neste momento recomeça sua história com Guiomar.
Com o tempo, além do amor de Estevão, ela também passa a contar com os encantos do sobrinho da baronesa, Jorge, o qual se sente ameaçado com a presença do rival na vida da jovem Guiomar. Enquanto tudo isso acontece, a moça luta entre a sua necessidade de subserviência e suas ambições, assim como o desejo de encontrar o amor verdadeiro. Para alcançar o que ela quer, não terá nenhum problema com dissimulações e pensamentos a frio sobre diversos aspectos da vida. O que Guiomar de fato almeja é encontrar uma mão para sua luva.
O que eu mais amei neste livro é a força que a personagem principal tem, como ela é racional, a verdadeira doutora, como sua mãe a chamava, numa época que se esperava que mulher fosse um ser completamente emocional e nada racional. A heroína é uma personagem vista como fria e calculista, porém essa é a faceta que a vida lhe deu para sobreviver, e alcançar o que mais queria, sem ferir sua bem feitora e ainda assim não se ferir. Guiomar tinha grandes desafios a sua frente e soube lidar com os percalços que surgiram no caminho.
Uma leitura deliciosa, cheia de reviravoltas e um final surpreendente. O estilo do Machado para seus grandes livros realistas já estava bem presente e autêntico em A Mão e a Luva. Obrigada pela Guiomar!
Helena
Helena foi um dos meus primeiros contatos com a obra de Machado e a mais diferente possível do autor, pois esta é romântica e bem ao estilo do ápice do romantismo, com os elementos de amor impossível e as últimas instâncias que pode levar o desespero humano.
Essa obra continua com lugar cativo em meu coração, por ser muito bem escrito, com angústias reais e uma história completamente envolvente, sem nenhuma declaração tácita, porém com o entendimento do profundo e complexo amor que Helena tem que esconder de todas as pessoas mais queridas.
Helena é a filha bastarda de um conselheiro muito rico, que ao falecer, deixa em seu testamento a obrigação da família em compartilhar a herança financeira, assim como receber a jovem na sua casa, cuidando dela como se fosse filha legítima. Estácio é o filho do conselheiro, que de bom grado, aceita os últimos desejos do pai, enquanto a tia, Dona Úrsula, não é muito afeita da ideia de ter uma jovem estranha na casa. A jovem chega e começa a encantar a todos, menos o amigo de anos, Doutor Camargo. Sua filha, Eugênia, era a prometida de Estácio e com a interferência de Helena, ele temia que de alguma forma sua filha fosse prejudicada. Após uma grave doença, Helena ganhou a tia de todo o coração, no entanto, os passeios matutinos à cavalo começaram a ser motivo de suspeitas e curiosidade de muitos.
A narrativa se desenrola com noivados, amores fracos, mentiras, interesse financeiro e muito desprezo pelos escravos (como se fossem nada além de objetos, não pessoas, embora o fossem lembrados em caso de suspeitas que se levantam para cima da protagonista), descobertas sobre os verdadeiros sentimentos e a grande e misteriosa origem de Helena.
Apimentado com os toques de amigos e do padre, uma situação que poderia ter sido resolvida de forma simples, em nome dos bons costumes se tornou algo completamente trágico e fora de controle.
A crítica social presente é sobre o Conselheiro, que se vê no direito de ter as mulheres que quer, mesmo magoando a esposa e independente das consequências na vida das outras pessoas e famílias, simplesmente porque ele pode, por ser rico. Isso o autor deixa claro, embora, com o desenrolar da história, as pessoas se esqueçam dessa premissa e se lembrem apenas do desenlace amoroso de Helena.
Uma história que vale a pena ser lida, além de comparada aos maiores clássicos do Romantismo, que poderá ser notada como uma obra prima, com todos os elementos da época, com alguns detalhes do estilo machadiano, bem singelos na obra, considerando que é seu terceiro romance, o mais distante de tudo o que escreveu, mesmo assim, magistral.
Iaiá Garcia
Depois de Helena, é um romance bem ao estilo romântico, embora, as personagens femininas sejam muito fortes e decididas, a ponto de se sacrificarem para terem suas necessidades e desejos atendidos. Bem realista, no quesito de classes, mas sem as interferências do autor, mesmo com a narrativa em terceira pessoa, o que me fez sentir a falta do sarcasmo e ironia machadianas, que são a cereja do bolo das suas magistrais obras.
A história começa quando Luís Garcia recebe uma carta de Valéria, que pede sua intervenção para que convença o filho dela, Jorge, para servir na Guerra do Paraguai, pois ela o quer separar de uma paixão e não vê outro método, mesmo que as consequências sejam a morte do seu único herdeiro. Luís, que é um homem muito caseiro e não afeito de se intrometer em assuntos alheios, é convencido a falar com o resoluto Jorge, que pretende se tornar um herói de guerra e conquistar a moça que é o objeto de sua devoção.
Estela é uma jovem muito dedicada e orgulhosa que se sacrifica por conta dos julgamentos que pode vir a sofrer por amar o homem de uma outra posição social. Iaiá Garcia é a menina, no início do livro, filha de Luís Garcia, com uma personalidade forte, mesmo que rancorosa, cabe a ela unir os destinos dos personagens e fazer a história.
Com muitas reviravoltas, complicações amorosas, uma guerra que deveria durar alguns meses, durou anos, perdas familiares e resoluções de corações impassíveis, tudo isso permeia a narrativa, muito atraente e agradável.
Devo deixar o meu carinho pelo personagem Raimundo, um homem preto, alforriado, que decidiu permanecer com o Nhônhô Luís mesmo após ser liberto e devotou sua vida a servir a família, além de ser um ótimo amigo, mesmo em tempos turbulentos. É o primeiro personagem que encontrei nessas condições nos livros do autor até o momento e achei tão bonito, mesmo que o personagem não tenha o destaque que merecia.
Posso resumir Iaiá Garcia fazendo mais uma conexão com o autor russo, Tolstói, porque esse tem uma leve semelhança com Guerra e Paz, por conta da citação da Guerra do Paraguai e a personagem Natasha Róstov que parece muito com Iaiá Garcia, na impulsividade juvenil e no amor com o pai e o noivo. Claro, como explicado através do personagem Jorge, um livro com implicações militares exige muita pesquisa, a qual Machado não estava com muita vontade de fazer.
Pode não ser a tríade realista, mas são excelentes livros e são meus xodós, porque são do meu autor da vida, que consegue exprimir como ninguém a alma brasileira de ontem e hoje, mesmo no quesito romântico, com seu jeito peculiar e especial. Fico muito feliz por ter terminado esta leitura e desejo finalizar a leitura dos romances em breve!