Renato Medeiros 25/09/2010
Ensaio para a obra prima
A relação conflituosa entre mãe e filha se configura como o eixo de Verão no Aquário, segundo romance de Lygia Fagundes Telles. Publicado em 1964, o livro ainda parece ser o embrião de outro romance, As Meninas, publicado nove anos depois e considerado por leitores e críticos como sendo a obra-prima da escritora paulista.
Raíza é uma jovem em constante devaneio, que vive presa em sua redoma fictícia, sendo afetada pelo ar abafado de um caloroso verão. Alimenta em si sentimentos de inferioridade e aflições por acreditar sofrer a rejeição de sua mãe. Já Patrícia é uma escritora reclusa e que aparentemente não se importa com sua filha, não demonstrando grandes afetos, provavelmente pelo fato de Raíza pensar e agir de maneira contrária aos seus princípios retos e conservadores.
É desse desencontro entre as duas que surge a vontade de competição, que faz a filha disputar com a mãe a atenção de André, um jovem religioso, amigo de Patrícia e que Raíza julga ser amante dela. Entretanto, mesmo que de maneira inconsciente, a jovem parece disputar mesmo é a atenção de sua mãe, pois demonstra ter inveja do carinho que ela deposita inteiramente em seu amigo ou amante. Sendo assim, o interesse de Raíza por André, que ela acredita ser amor, pode não representar nada mais além de ciúme.
Quase todas as personagens de Verão no Aquário são bem definidas e aprofundadas. Mesmo que nem todas se relacionem diretamente com o que fora chamado de eixo da narrativa, cada uma tem sua importância e suas peculiaridades destrinchadas. Tia Graciana, Marfa, Dionísia, por exemplo, têm suas presenças indispensáveis e justificadas. Até mesmo Fernando, amante de Raíza e que supostamente tem papel secundário, contribui significativamente para se compreender melhor a protagonista. Porém, esse romance não é o primeiro nem o mais brilhante em que Lygia Fagundes Telles executa a elaboração de suas personagens. Em As Meninas há uma evolução nesse aspecto. Isso evidencia o quanto a autora é comprometida com a sua literatura, empenhada em criar mais do que meros personagens e situações para preencher espaços.
Qualificar Verão no Aquário como ensaio de As Meninas pode ser bastante perigoso, mas a comparação parece ser inevitável para quem teve acesso aos dois textos e principalmente para quem leu As Meninas primeiro e pôde observar o quão forte é a carga literária contida em suas páginas. Verão no Aquário é inteiramente narrado por Raíza, que em seu fluxo de pensamento leva o leitor a permanecer em constante contato com sua mente contraditória, ambígua, porém própria. Aliás, investir no psicológico de suas personagens é uma característica marcante na obra de Lygia Fagundes Telles. Contudo, em As Meninas essa qualidade é intensificada em um texto que tem sua narração alternada pelo fluxo de pensamento de três personagens - e de outra voz anônima -, utilizando-se de linguagens distintas para cada uma. Sendo assim, Raíza se apresenta como o que mais tarde viria a ser desenvolvido nas personagens Lorena, Lia e Ana Clara.
Quanto à linguagem, a autora dá um salto de qualidade em As Meninas, quando modifica a forma de dizer e pensar de cada personagem, todas as vezes que o ponto de vista da narração se alterna. Em Verão no Aquário essa linguagem ainda não sofre experimentações, possui a qualidade e a elegância, mas não há a ousadia do trabalho posterior. Outro detalhe que torna ainda mais íntima a relação entre os dois textos é a apropriação do vício de Marfa, que sempre repete a palavra/pergunta "compreende?" após suas falas, constante em Verão no Aquário. Esse recurso é novamente utilizado, de forma amadurecida, na composição da personagem Lia, de As Meninas, que repete palavra semelhante: "entende?".
Dispondo de alguma linearidade, Verão no Aquário é dividido em quinze capítulos que possuem certa independência, mas que mantêm ligação entre si. Entretanto, é mais um livro que pode ser chamado de "romance de meio", que começa quando já se começou ou pelo menos já deveria ter começado quando se tem acesso, na primeira página, ao fluxo de pensamento de Raíza. Cabe ao leitor juntar indícios do que houvera para reconstituir o que linearmente deveria ter sido o início. A autora envolve o seu leitor em dúvidas que nem sempre serão elucidadas e permite que ele também construa, pensando o pensamento de sua personagem-narradora.
Embora não seja o melhor texto de Lygia Fagundes Telles, Verão no Aquário tem seu destaque garantido por suas qualidades estéticas e pelas possibilidades de discussão que pode trazer à tona.