Stefanippaludo 29/08/2021
Muita expectativa e um tanto de decepção
O terceiro e último livro da trilogia retoma alguns dos acontecimentos anteriores, focando na história de Giuseppe Garibaldi - o famoso corsário italiano, líder da marinha gaúcha - e Anita Garibaldi, uma moça catarinense que ele conhece e se apaixona durante a guerra. A história foi lançada em 2017 e eu aproveitei para ler quando fui passar férias em Laguna, o cenário da primeira parte desse livro.
E eu comecei a leitura com muita expectativa. Sou fã das outras histórias da autora e por esse ser um dos seus mais recentes trabalhos, acreditei que encontraria o melhor da escrita da Letícia. E me decepcionei um pouco, principalmente no início.
Durante todo o trecho que se passa na Revolução Farroupilha a história foi extremamente lenta e desinteressante. Eu tive dificuldades em me concentrar e "mergulhar" no livro. A autora muito contava e pouco mostrava - uma das máximas conhecidas na escrita criativa. - Os acontecimentos históricos e as ações dos personagens também eram apenas dito. "Garibaldi fez isso", "Garibaldi fez aquilo", "Garibaldi venceu X inimigo". Faltava diálogo, faltava emoção, faltava ações e faltava a poética comum da escrita da Letícia nos outros livros.
A impressão que tive é que a autora se perdeu em meio a tantos fatos históricos. E escrever ficção histórica é muito difícil mesmo. É complicado contar os acontecimentos de forma que estejam interligados com os personagens e enredo e não soem como simples conhecimento e informação. É difícil transformar a teoria em ficção. Deve ter sido mais difícil ainda se considerar que a autora já havia contado tudo isso em seu primeiro livro. Mas agora ela precisava reaver alguns pontos para que tudo fizesse sentido.
Esse deve ter sido o problema: unir o real e histórico ao ficcional, de forma clara e objetiva, sem repetir informações já ditas e histórias já contadas, mas de forma a se fazer compreender mesmo entre leitores que não leram os livros anteriores.
Complicado. Eu sei. E até perdoo a autora por esses deslizes. Não havia muito a se fazer.
Mas não foi só isso que me incomodou. Pelo subtítulo da obra - "a história de amor de Anita e Garibaldi" - eu esperava mais amor e menos guerra. Achei que o livro seria focado no romance entre esses dois personagens, em como eles se conheceram, como se apaixonaram e como foi a vida ao longo dos dez anos que viveram juntos. E até teve esse tipo de coisa, mas muitas vezes era uma parte ínfima no meio de tantos outros acontecimentos e no meio da guerra.
O momento que eles se conhecem e os primeiros meses juntos, deixam muito a desejar. Queria ver eles se conhecendo, conversando, descobrindo a paixão e se amando. Mas só o que vemos é ambos lutando lado a lado, sem trocar uma única palavra. Por exemplo, abaixo o momento após Anita abandonar sua vida e fugir com Garibaldi. Tudo que é dito no trecho abaixo, não havia sido mostrado em nenhum outro trecho anterior e também não foi nos posteriores.
Mas enfim, se isso não for suficiente tenho mais um problema para o livro: seus erros. Na capa há o selo da Editora Bertrand Brasil. Não conhecia essa editora e achei que caso se tratasse de uma pequena editora, justificaria alguns dos erros de edição encontrados. Qual foi a minha surpresa ao descobrir que a Bertrand é um selo da Editora Record! E nesse caso, a Record deixou muito a desejar.
Tem uma cidade de Santa Catarina, que é bem importante pra história, que se chama Lages. A grafia do nome da cidade é "Lages" com "G" mesmo. Porém, no livro ela é apresentada hora como "Lages", hora como "Lajes". Esse foi um erro que vi várias vezes e que me incomodou bastante. Custava padronizar? Se colocassem todas as ocorrências do nome desse município com "Lajes", mesmo que errado, seria menos pior. Achei uma falta de consideração e um erro brutal para um editora tão grande e uma escritora tão conceituada.
Há alguns outros problemas também facilmente corrigidos por um bom editor: coisas como informações que são repetidas várias e várias vezes de forma exaustiva e que não são importantes pra história e até trechos aos finais do parágrafo que estão entre parênteses (?). Esses trechos parecem mais anotações da autora para escrever depois, do que trechos que deveriam estar na versão final. E todos eles são nos finais dos capítulos, não há nenhuma ocorrência dessas nos meios dos capítulos.
E ainda não obstante, por último, teve mais uma coisa que notei e que me confundiu: os tempos verbais. Nos capítulos narrados em terceira pessoa por Giuseppe Garibaldi, há uma mistura de presente e de passado. Nesse caso, pode ser que o problema seja eu, e não a escrita. Talvez eu que não esteja acostumada com livros nesse estilo e por isso tenha estranhado. Pode ser que seja uma forma de delimitar coisas que acontecem em diferentes períodos de tempo dentro de um mesmo capítulo. Sei lá…
Antes de acabar minhas críticas e ir para os pontos positivos desse livro, um último adendo: o livro é dividido em 3 diferentes partes - a que conta do casal Garibaldi na Revolução Farroupilha, em Montevidéu e depois na Itália. - Na primeira parte a história é narrada de forma não-linear sob o ponto de vista de Garibaldi (em terceira pessoa) e de Anita (em primeira pessoa, após sua morte). A narração de Garibaldi intercala de forma não linear entre o período pós-morte de Anita e seu exílio da Itália e passado, narrando o ocorrido na revolução. O mesmo acontece na segunda e na terceira parte, porém, existe o acréscimo de um novo ponto de vista: o da deusa Nix, a deusa da noite na mitologia grega.
Porém, se tu for parar para analisar, nenhum desses pontos de vista é realmente necessário. Era possível que a autora contasse toda a história somente através do ponto de vista do Garibaldi. Ele mesmo conta coisas pessoais e íntimas de Anita, então não havia a necessidade de mais. Muitas vezes, ambos os pontos de vistas contam sobre o mesmo acontecimento e de forma parecida, repetindo informações e tornando a leitura ainda mais lenta e custosa. Não é a toa que o livro tem 500 e tantas páginas. A Letícia podia ter usado esse espaço para se aprofundar mais em outras questões, ao invés de contar várias vezes sobre o mesmo acontecimento, detalhá-los melhor.
Como nem só de críticas se vive uma obra, também tenho alguns elogios para fazer à história. Elogios importantes e que me fizeram manter a leitura até o fim.
O primeiro é a criação dos personagens. Tanto Anita quanto Garibaldi são personagens humanos e verossímeis, que a Letícia trabalhou muito bem. As crises de ciúmes de Anita, sua teimosia e até mesmo a dificuldade dela em aceitar seu papel naquela sociedade foram pontos fortes. O mesmo para a sua relação como mãe. A Letícia não romantizou a maternidade, ela não colocou uma personagem que amava estar grávida e amava cuidar dos filhos. Muito pelo contrário. Para Anita, as gravidezes eram prisões, os filhos eram empecilhos para aquilo que ela queria. Mas não por isso ela odiava suas crianças. Não, ela vivia em eterno conflito, amando os filhos, mas odiando o papel de mãe.
Anita não foi feita para ser dona de casa e ficar cuidando dos afazeres domésticos. Ela enjoava da rotina e entediava-se rápido. Anita queria a adrenalina e a surpresa das guerras e batalhas. Queria lutar e sentir-se viva, esquecendo-se até mesmo dos filhos.
Giuseppe também não era um pai exemplar, muito menos um marido perfeito. Ele só pensava na guerra e nas vitórias. E queria ser um homem exemplar, um líder honrado, orgulhoso e honesto. Muitas vezes, pensando só em si mesmo e no seu orgulho, recusava propostas, dinheiro e alimentos, mesmo que isso significasse que a esposa e os filhos passariam fome e dificuldades. Garibaldi dificilmente lembrava do quanto o restante da sua família sofria, da vez que seu filho mais velho quase morreu de fome, da gravidez de risco de sua esposa por falta de carne vermelha.
Outra coisa que eu achei um acerto na história, e que é comum na escrita da autora, é a não-linearidade da narrativa. O enredo vai para o presente e para o passado, o tempo todo, mostrando como o personagem ainda lida com aquele conflito, como aconteceu tal coisa e sempre de maneira coesa e coerente.
Até mesmo os spoilers dados ao longo da obra - ou os flashforwards como chamamos em escrita criativa - contando acontecimentos que viriam a acontecer no futuro - como por exemplo: "Aquela era a última vez que eu veria meus filhos antes da minha morte" - serviam para manter a atenção do leitor e o suspense, mantendo-o atento à leitura. De forma alguma esse recurso, bastante aplicado nessa narrativa, prejudicou a história, bem pelo contrário, tornou-a ainda mais interessante.
Leticia Wierzchowski, portanto, conseguiu contar a trajetória do casal Garibaldi com maestria, passando pelos dez anos em que estiveram juntos em meio a lutas e revoluções e apresentando personagens que convincentes - fato importante em uma narrativa que utiliza-se de pessoas reais - . Aprendi muito ao longo desse livro sobre a história do meu Rio Grande do Sul e do Brasil, mas também do Uruguai, da Itália e do mundo. Também, mais uma vez vi que mesmo esse casal histórico, que é citado como um modelo de paixão a ser seguida, teve seus problemas, suas brigas e seus defeitos.
Terminei o livro e fico com a vontade de bater um papo com a autora e descobrir o que é ficção e o que é real nessa história. Todos os acontecimentos, do início ao fim, são plausíveis e não consegui identificar em nenhum momento algo que deva ter sido inventado. Fico me perguntando o quanto de pesquisa não deve ter sido necessário fazer e como a Letícia descobriu tantas informações ou então, como ela fez para incorporar acontecimentos inventados de forma que se misturassem com reais e tornassem indistinguíveis.
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