Gustavo Araujo 24/06/2013
É Isto um Livro?
Dizem que o italiano Primo Levi (Turim, 31 de julho de 1919 — Turim, 11 de abril de 1987)começou a escrever “É Isto Um Homem?” de trás para frente, ou melhor, que iniciou seu relato sobre os onze meses que passou em Auschwitz abordando os últimos dez dias no campo.
Dá para imaginar o motivo. Levi fora deixado na enfermaria juntamente com cerca de 800 outros prisioneiros, considerados fracos demais para a marcha de evacuação rumo a outros campos por causa da aproximação dos russos em janeiro de 1945, um destino que acabaria ceifando a vida de praticamente todos aqueles obrigados a enfrentá-la.
Esses dez dias no campo abandonado resultaram na mais completa degradação moral, física e humana e, exatamente por isso, representam o que há de mais pungente no relato. Refletem a redução do homem às condições mais básicas de sobrevivência, quase instintiva, e sem concessões à qualquer tipo de esperança.
No entanto, era necessário falar também do que ocorreu antes. Para tanto, Levi toma o leitor como cúmplice, conduzindo-nos aos dias que levaram à sua detenção no campo provisório instalado pelos nazistas próximo a Modena, no norte italiano. Lá, mostra-nos a angústia das famílias detidas que, àquela época, já sabiam perfeitamente o que lhes aguardava, mas mesmo assim continuavam comemorando aniversários e deixando a roupa das crianças secando nas cercas de arame farpado duplo.
Levi nos joga com violência na atmosfera sufocante dos trens com destino à Polônia e divide conosco a angústia entre ser selecionado para algum trabalho ou marchar diretamente para as câmaras de gás em Birkenau. Com uma pontada de alívio – nunca esperança, reforce-se – acompanhamos a maneira como Levi aprende a sobreviver no campo de trabalho de Monowitz, para onde foi destacado.
Com habilidade, confidencia-nos o martírio da vida entre reses descartáveis, para quem a morte era o destino evidente em pouco tempo. Com ele aprendemos as regras, sussurradas entre o frio e as péssimas condições de trabalho.
Tirar o chapéu, responder “jawohl” sempre que perguntado, enganar os outros prisioneiros, conseguir uma colher. Comer seu próprio pão e batatas e, se possível, roubar o do companheiro ao lado. Entender a hierarquia dos presos, aprender as regras do comércio envolvendo pães, panelas, cigarros. Respeitar os políticos, os assassinos, os proeminentes, os kapos e os chefes de barracão. Compreender, o mais cedo possível, que jamais que haverá uma saída, que não há espaço para condescendência, para respeito por si próprio ou pelos outros. Acostumar-se com o frio, com a lama, com os calçados de madeira. Perder a própria identidade e chamar-se por um número.
Qual o segredo para sobreviver? Levi nunca aborda o assunto por tal perspectiva. Vive um dia depois do outro, apenas. Nem mesmo quando é destinado à enfermaria, o ka-be, ou para trabalhar como químico no laboratório ele se permite pensar na existência de um mundo exterior, ou na ideia de que um dia fora um homem livre. Tem noção de sua aparência degradante, de sua cabeça raspada, o rosto encovado, os olhos fundos, suas costelas aparentes.
Ensina, porém, que assim como não existe a felicidade completa, também a infelicidade completa é irrealizável. Essa ideia o conduz à aceitação de seu destino de maneira estoica – e também heroica, por que não? – sem os questionamentos de ordem filosófica de Remarque, mas ainda assim nos fazendo pensar: se a morte é o limite para cada alegria, também o é para a mais profunda tristeza.
Muito mais do que um livro, "É Isto Um Homem?" traduz-se em um monumento à dignidade - ainda que de forma indireta - a constatação de que mesmo em meio ao horror, ou talvez por causa dele, é possível descobrir o que nos torna humanos.