Dhiego Morais 12/09/2020Antologia MacabraAs estações passam velozes, num girar pelo espaço que nunca se interrompe. As sementes anteriormente lançadas à terra são engolidas, e em seu seio arenoso devem romper a casca e germinar, enquanto o tempo se esvai. Pouco a pouco, a colheita toma forma e ganha robustez. As palavras aqui plantadas são frutos de inúmeras mãos e, considerando o tempo de maturação, finalmente podem ser colhidas sob a forma desta Antologia Macabra. Sirva-se, se vosso estômago permitir.
Antologia Macabra nasce como um livro de contos de terror e horror, organizados por Hans-Åke Lilja em comemoração aos vinte anos do site Lilja’s Library, especializado no universo literário criado por Stephen King. Auxiliado e inspirado por Brian Freeman – editor da Cemetery Dance –, Hans conseguiu reunir doze tentadoras contribuições, entre contos inéditos, escritos especialmente para a antologia e contos clássicos ou anteriormente publicados.
Antes que comentemos das histórias que mais merecem atenção, devemos conversar sobre alguns pontos mais gerais de Antologia Macabra, entre eles a fluidez da narrativa do livro e os temas mais abordados:
— Ainda que a antologia organizada por Hans tenha pouco mais de duzentas páginas, a distribuição em doze contos consideravelmente curtos torna a leitura extremamente fluida, ou seja, rápida, quase imperceptível. Transitando entre o gênero de terror e horror, basicamente, nem mesmo o teor assustador das histórias impedem ao leitor voraz o avanço pelas páginas. A sagacidade em apostar em histórias curtas promove o sucesso de boa parte dos contos selecionados.
— Tratando-se dos temas, Hans convidará os leitores a redescobrirem seus medos em parques abandonados e atrações circenses assombradas e misteriosas; reencontrar seu antigo amor; interagir com criaturas estranhas e muito mais temas macabros.
A seguir, apresentarei três dos contos que mais me intrigaram e me impressionaram, bem como os motivos para tanto:
— O Fim de Tudo, de Brian Keene: este é na minha humilde opinião o melhor conto da antologia de Hans-Åke Lilja. Diferente de tudo o que podemos encontrar em Antologia Macabra, em O Fim de Tudo, Brian Keene nos convida a conhecer a história de um pai que perdeu todos os que um dia já amou. A forma como tudo aconteceu é narrada pelo protagonista, que em nenhum momento se identifica.
Dia após dia, reencontramos nosso protagonista em sua agonia pessoal. Junto dele, o observamos desejar que o mundo acabasse de inúmeras formas, esperançoso que a força de sua vontade seja o suficiente para fazer as rodas da magia finalmente engrenarem. Dos fins pelo aquecimento global a um apocalipse zumbi, da erupção de um vulcão ao choque de um asteroide contra a Terra; sua vida parece ter um único propósito: esperar o fim de tudo.
Se por um lado os demais contos versem sobre o horror e o terror, O Fim de Tudo transborda um drama profundo, delicado e intensamente doloroso. O macabro não está no propósito da história, mas talvez no que a vida transforma nosso protagonista. Não o conhecemos, não sabemos sua idade, sua aparência e sua trajetória de vida, mas nos conectamos a ele como poucas vezes nos conectamos a outras personagens.
— Atraídos para o fogo, de Kevin Quigley: mais um dos contos notáveis dessa edição; aqui seremos levados juntos de Chip, Bobby e Johnny, três crianças de dez a doze anos que acreditam serem corajosas o suficiente para burlarem as regras e enganarem seus pais, de modo a conseguirem ir até o parque de diversões itinerante. Lá, conhecem LaRue, um homem estranho e responsável pela atração chamada Mundo do Espanto. Desejosos de encarar a atração, LaRue os convida, entretanto, para algo ainda mais assustador: Atraídos para o Fogo, uma casa mal-assombrada no topo de uma colina.
Sendo um dos contos mais longos da antologia, Atraídos para o fogo consegue desenvolver uma série de infortúnios que se acercam das personagens. A história consegue trabalhar com sucesso o terror que entranha os subcapítulos, alcançando um clímax maravilhoso, ainda que não totalmente imprevisível. A forma como a narrativa se desenrola pode recordar ao leitor nostálgico obras como IT e O Corpo (Outono da Inocência).
— O companheiro do guardião, John Ajvide Lindqvist: por falar em histórias espetaculares, o conto de Lindqvist evoca toda a nostalgia dos jogos clássicos de RPG e ainda faz referência às histórias cósmicas de H. P. Lovecraft.
Aqui, encontramos Albert, um garoto sueco que nasceu para ser mestre do jogo nas partidas de RPG. Extremamente criativo e sempre com o suporte incondicional de seus pais, o jovem parece finalmente construir sua identidade e sua reputação no colégio. Do outro lado da linha, temos Oswald, um garoto que costuma sofrer demasiadamente com o bullying na escola, enquanto tenta se enturmar na roda de amizade de Albert.
Inesperadamente, um ponto em comum interliga os dois personagens a um futuro estranho, onde acompanhamos as descobertas da adolescência, os amores e desafetos se misturarem.
A história de Lindqvist, brilhantemente redigida para a edição de Antologia Macabra, encerra com chave-de-ouro o livro de contos, seguindo pelo horror sempre com uma fluidez narrativa que impressiona. O leitor facilmente se pegará pesquisando pelo autor sueco, em busca de mais obras para conhecer.
Ainda que o livro possua boas histórias, não poderia encerrar essa resenha antes de comentar sobre a existência de três contos extremamente problemáticos que abrem a Antologia Macabra, de Hans-Åke Lilja.
— Sendo provavelmente o chamariz da antologia, O Compressor de Ar Azul (1971), de Stephen King é um verdadeiro show de horrores – e não no sentido de ser aterrorizante –, principalmente por seu protagonista que promove o espírito da misoginia e da gordofobia. Dotado de experimentações narrativas e interferências incômodas, todo o texto é desproposital e indigesto de se ler. Talvez por ser um conto anterior a sua primeira publicação (Carrie, 1974), ele carregue toda uma visão deturpada do eu mais jovem do autor, distante do crivo afiado de Tabitha King.
— A Rede, de Jack Ketchum & P. D. Cacek, poderia ser um conto interessante, reflexivo e em tom de alerta sobre os perigos de se relacionar pela internet, porém desliza e se sobressai como uma história envolvendo o relacionamento abusivo em que quem não deveria ser vítima é culpada e o agressor é tratado, inclusive, com condescendência pela polícia.
— Finalmente, Pidgin e Theresa, de Clive Barker: neste conto, temos como protagonistas, Pidgin, um papagaio, e Theresa, uma tartaruga, ambos de Raymond Pocock, futuro santo e curandeiro das crianças. Por meio de um anjo, observamos sua ascensão aos Planos Celestiais. O conto se torna extremamente problemático ao transformar a figura de um abusador de menores em herói, narrando sua redenção pelos olhos das protagonistas. Intragável, intragável e intragável.
Iniciando de maneira obscura, controversa, Antologia Macabra consegue estabilizar-se como um bom livro de contos, principalmente se compreendermos seus problemas e o discutirmos. A contribuição valorosa de autores como Ludqvist, Keene, Campbell, Quigley e Poe também são responsáveis pela boa avaliação. Todavia, a participação de alguma autora de terror e horror, tais como Seanan McGuire, Anne Rice ou até mesmo Octavia Butler enriqueceriam muito mais a antologia (e poderiam substituir os contos questionáveis).
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https://skullgeek.com.br/resenhas/resenha-antologia-macabra-de-hans-ake-lilja/