Isabella658 10/03/2024
Uma leitura ansiosa e angustiante.
Bom, que leitura angustiante. Já esperava um pouco que seria assim pelo tema, mas superestimei a minha capacidade de aguentar.
É uma história sobre racismo e sobre escravidão. A protagonista vive num paradoxo voltando no tempo pra uma época onde ainda era normalizado escravizar negros e indígenas, então já esperamos que ela viva o inferno na terra. De fato sim, mas também meio que não, podia ser pior.
A única coisa que tenho pra criticar é a divulgação do livro ser toda focada na ficção científica, acredito que é o motivo de decepção de vários que avaliou o livro tão baixo: não desenvolve bem a questão da viagem do tempo. Quando acontece ela entra em choque e está o tempo todo com medo, eles custam a acreditar, mas não podem negar o que viram. Principalmente porque tudo o que acontece com Dana no passado, permanece com ela no presente. Essa parte achei ok, teve sim o desenvolvimento do medo e do questionamento. Toda vez eles se questionavam como acontecia, quando ia parar, como parar. Porém, não é o foco da história, fica beeeem em segundo plano. A Dana percebe o paradoxo e comenta sobre ele uma vez e pronto. E acho que isso decepcionou muita gente. Eu não, porque não tava com expectativas. O livro é claramente mais focado na crítica social e pessoal.
Essa é outra parte que vi criticarem, porque esperavam mais sangue e acontecimentos piores. Até mesmo a Dana questiona isso quando volta, por que tudo parece tão tranquilo? E é aí que entra a frase:
?? [?] Não sabia que as pessoas podiam ser condicionadas com tanta facilidade a aceitarem a escravidão.?
O maior ponto do livro é sobre a capacidade adaptativa do ser humano, principalmente sobre isso de aceitamos a realidade que nos é imposta tão facilmente. E isso entra em muitos aspectos. É como ver a corrupção na política e aceitar, porque ?político é tudo assim mesmo, nunca vai mudar?.
De início Dana tenta fazer alguma coisa, até mesmo Kevin, mas no fim eles acabam aceitando a nova realidades dele e é tão fácil, que isso os deixam completamente malucos da cabeça. O pensamento de ter que aceitar ser escravizado ou morre, tenho que fazer isso porque é minha única opção, é o sentimento mais aterrorizante do livro.
E isso leva pra outra questão do livro, que é a diferença entre uma pessoa negra do século XX é uma pessoa negra do século XIX. É de se esperar que a Dana se encaixe ali com os outros pela experiência compartilhada, mas não, ela não é como eles e ela não é como os brancos também. Então tem essa questão do não pertencimento. E isso a faz ser vista como negra branca. Ela questiona muito quem ela é e o papel dela ali. A rivalidade que existe entre os próprios escravizados. É um livro muito mais reflexivo sobre essas questões humanas, sobre como a Dana aceita e normaliza fácil demais a condição dela. Por isso parece tudo tão mais fácil. Fora a relação dela com os brancos, que chega a dar raiva porque a gente passa a odiar todo branco nesse livro. Até eu mesma comecei a me questionar. Mas são sentimentos conflitantes o dela, muito conflitantes. Como a Alice diz, é uma mistura de ódio, amor, raiva e tudo de bom e ruim. Porque não tem como ser uma relação genuína, se a pessoa exerce tanto poder sobre você. Não há escolha.
Enfim, é um livro pra ler e refletir sobre relações humanas. Não achei que a Dana passou pano pro pessoal daquela época não, o relacionamento deles não eram convencionais e é uma parte da reflexão da história. Sim, eles são monstros por escravizar pessoas, e é exatamente por isso que cada açãozinha minimamente boa deles (como o Tom dar roupa pro novo bebê da Carrie) é vista como uma enorme bondade. ?Como assim o cara que me tortura deu um cobertor pro meu bebê recém nascido? Ele deve ter alguma bondade dentro dele!?. A gente sabe que ele só tá cuidado pra que tenha mais um escravo e consiga lucrar com ele mais tarde, mas pra quem só recebe dor, algo assim parece outra coisa. É uma relação complexa entre vítima e violentador. Nada é tão preto no branco e foi isso que amei no livro.
Adorei a dinâmica da Dana com o Kevin, cheguei até a odiar ele algumas vezes, mas mostra bem como a gente, como brancos, nunca vamos entender o que é estar na pele de uma pessoa negra. Mesmo tendo vivido horrores lá também, não consegui sentir a mesma empatia que senti pela Dana.
E sobre o plot: não achei ruim. O livro já começa com ele, então já imaginava que seria nada chocante, porque o objetivo dele é nos deixar instigado no começo da história. E digo mais: foi o que mais me deixou angustiada. Toda vez que ela voltava pro presente e aquilo não tinha acontecido, eu ficava com mais medo de ler porque sabia que não tinha acabado. Foi uma leitura ansiosa. E quando aconteceu a cena, em vez de sentir a dor dela como achei que sentiria, eu senti foi alívio, porque tinha finalmente acabado. E achei isso simplesmente genial.
Recomendo bastante, é um ótimo livro pra trabalhar reflexão e empatia. E é nada do que esperava que fosse, mas não de uma forma ruim.