Krishnamurti 03/08/2017
Os sete passos da oração do carrasco
1º PASSO - “A oração do carrasco” é o título do livro de contos de Itamar Vieira Júnior recentemente lançado pela Mondrongo Editora. A leitura inicial do volume deixa-nos uma forte sensação de que a frase homo homini lupus, ou em bom português; o homem é o lobo do homem, é a mais pura e cruel verdade. Thomas Hobbes (1588-1679) tornou tal afirmativa célebre em sua obra Leviatã onde argumenta também que a paz civil e união social só podem ser alcançadas quando é estabelecido um contrato social com um poder centralizado que tem autoridade absoluta para proteger a sociedade, criando paz e uma comunidade civilizada. Muito bem; aquela afirmação que apresenta a transfiguração do homem como um animal selvagem, consiste em uma metáfora que indica que o homem é capaz de grandes atrocidades e barbaridades contra elementos da sua própria espécie. O conto título “A oração do Carrasco” é uma grande metáfora que alargada, aponta para o fato de que o homem tem um grande potencial para o bem mas também para o mal, especialmente quando pensa defender ideais nobres e como isso na mentezinha estreita, “imola a si mesmo por um bem coletivo, imola a tranquilidade de dias em que não precise guardar em suas mãos a morte. Imola as noites de sono tão regradas do insone fardo que seus antepassados carregaram. Imola a cada sentença a sinceridade do pesar. Cultiva a indiferença. Sacrifica a solidariedade. Imola o perdão. Imola a possibilidade de mudança. Imola seu grito e segue seu caminho sem olhar para trás”. Só para reforçar: o significado da palavra imolar é: matar como forma de sacrifício ao que é considerado divino e sagrado. O autor reuniu em seu livro sete contos. Faltam 6.
2º PASSO – Muitas vezes essa atitude de lobo se concretiza através da frase "os fins justificam os meios". É o que lemos em “A floresta do adeus”. Situação surreal onde uma família é separada por meio de uma cerca protegida por soldados. Uma inexplicável cerca que divide vidas, que impede a fraterna convivência entre os homens, que obstaculiza até a reprodução da própria vida.
3º PASSO
Cada indivíduo se torna portador de um símbolo que define a qualidade de sua entrada na sociedade. Por isso, adota-se um “padrão de estranhamento” que está sempre atrelado a algum tipo de “padrão de normalidade”, e, neste caso, a principal referência é a de que o outro-estrangeiro é, por definição, um não-cidadão, quando isto significa que a normalidade está construída sobre a idéia de nacionalidade. Se para Hannah Arendt (1989), a inexistência de definição territorial para os displaced persons (os delocados), torna possível a barbárie, e a luta pelo direito a ter direitos se torna uma política fundamental, especialmente para a afirmação dos direitos humanos, também é verdade que a prisão dos conceitos de humano e não-humano à dimensão do território se torna uma faca de dois gumes. Assim é em nosso mundo atualmente. O conto “Meu mar (Fé)” narra a trajetória de vida de uma mulher do Dakar (Senegal) que ante as tamanhas impossibilidades do continente africano resolve imigrar para o Brasil de forma clandestina em um navio. Durante a travessia e em sua chegada, dá-se conta, e vive na pele, outras tantas dificuldades decorrentes do fato de “estar estrangeira” e ser negra. O “Contrato social” apontado por Hobbes lá no século XVII acabou por se configurar numa política planetária centrada em um poder econômico hegemônico que violenta profundamente a condição humana em um processo de seleção universal progressiva. Num mundo que se quer globalizado em uma mesma escala existencial, quem é o estrangeiro?
4º PASSO
“O espírito aboni das coisas” é uma narrativa mítica sobre Os Jarawara (povo indígena pouco conhecido da região dos rios Juruá e Purus do Amazonas). O espírito aboni das coisas é a cosmovisão engendrada pela cultura desse povo que concebe o sopro vital que perpassa todas as coisas do universo e que o homem ocidental, o dito civilizado, destrói incansavelmente porque num mundo de consumo desenfreado nada possui alma. Nada. É somente matéria e pronto.
5º PASSO
“Alma' configura uma narrativa impressionante que versa tema e situação social ainda pouco estudada pela historiografia. Trata-se da recomposição ficcional de uma época (provavelmente meados do século XIX) em que acentua-se a crise da economia açucareira no nordeste. A partir da década de 1850 a lavoura começa a definhar. Os velhos mecanismos de produção, a falta de crédito, as epidemias, intempéries climáticas, a concorrência nos mercados, e a diminuição no número de cativos, contribuíram para isso. O resultado prático de um tal estado de coisas provocou reflexos negativos em muitas fortunas tradicionais, sobretudo no Recôncavo Baiano onde houve inúmeras falências e perda de engenhos para a emergente burguesia comercial. As expectativas da economia baiana pareciam ser de um verdadeiro colapso da produção agrícola secularmente estabelecida na cultura da cana-de-açúcar.
Os estudos referentes às características da escravidão (sobretudo quanto às relações entre senhores e escravos) foram até analisados aqui sob duas óticas bastante distintas. De um lado Gilberto Freyre (com o seu trabalho de fôlego Casa Grande & Senzala) ofereceu-nos o estereótipo do cativo submisso, conformado, acomodado ao sistema escravista. Concebeu a efígie do que, muitos anos depois, Eduardo Silva chamaria do escravo Pai João, ou seja, a imagem da acomodação por excelência. Freyre no conjunto de sua obra, retrata uma escravidão idílica, romântica, na qual os protagonistas foram os escravos que gozaram o cativeiro, acomodando-se a este da melhor forma que puderam. Outros historiadores, como Gorender, deram relevância ao escravo rebelde, aquele que viveria sob o signo da negação. Portanto, concedeu-nos a representação do escravo Zumbi, isto é, o cativo heroificado pela sede de liberdade e coragem de negar o sistema por completo. O escravismo, nesta interpretação, teria sido um sistema de extremo rigor que esmagaria toda e qualquer possibilidade de autonomia dos sujeitos históricos oprimidos, dentro do regime escravista. Estes não teriam a possibilidade de formular projetos, de constituir famílias, de vislumbrar a liberdade sem quebrar com os grilhões da sujeição. É assim que, dentro desta última perspectiva que Itamar Vieira Júnior cria a personagem “Alma”, uma escrava que passou por inúmeros sofrimentos e sevícias imagináveis dentro de um contexto de completa falência econômica de seus senhores, de que os trechos abaixo são retratos vívidos:
“...éramos muitas mulheres que serviam no princípio, quando no engenho, até que eles perderam o engenho, vieram morar em um sobrado na cidade, aí poucas ficaram porque eles foram vendendo” ... “... então tive que lutar, inventar, enganar, eu tive muito que sonhar, até que um dia falei para mim mesma que da próxima lua não passava”. Ocorrem tragédias nesse conto... A violência gerando mais e mais violência sempre. Eis a mensagem maior do conto.
6º PASSO
A “libertação” dos escravos em (13 de maio de1888) não os libertou de toda a complexidade do sistema que os oprimia; em outras palavras, além do escravo que se rebelava ou o que se conformava, um panorama novo com forte conotação de “acomodação sem embates sociais” capta o ex-cativo que trabalhava, comia, bebia, dormia, mas que, acima de tudo, pensava e planejava as melhores maneiras de viver e superar uma condição social inferior em um mundo que ainda lhe era opressor e hostil.
A história de Doramar no conto “Doramar ou a odisseia” é um exemplo de como o trabalho doméstico, no Brasil historicamente exercido pela mulher negra escrava e posteriormente liberta, teve sua funcionalidade fortemente arraigada nas relações de favor ou compadrio, que são marcadas por relações de dominação/opressão de gênero e raça. A demarcação do trabalho doméstico como sendo coisa de negra, agiu incisivamente no fortalecimento dos valores paternalistas e patriarcais, onde as relações se estabeleceram com a falsa ideia de pertencimento que perpetuaram práticas de subordinação e dependência estratificadas como naturais, e inerentes a mulher negra (em muitas famílias negras a condição de empregadas domésticas, perpassou gerações). Uma situação fruto de raízes históricas, cuja ideologia vigente ainda determina que o lugar da mulher negra seja a cozinha e o cuidado do lar. Fica uma pergunta que não quer calar: Quando deixaremos de ser os lobos de nós mesmos?
Trechos: “Vinte e muitos anos nesta casa. Ainda bem que não esqueci. Preciso me apressar para que o almoço não fique pronto tarde e a dona não me chame a atenção”... “Fecho a porta, minha mãe não me pediria que fechasse a porta, porque lá quando era menina éramos livres e agora eu sirvo meus patrões que não me dão descanso. Olham para mim e dizem para os convidados que sou ‘como se fosse da família’e nada posso dizer”.
E finalmente o 7º PASSO. “Manto da apresentação”. Curiosamente o mais real dos contos, posto que embasado na vida e particularmente na obra mais emblemática, e de mesmo título, do artista Artur Bispo do Rosário. Num primor de texto de um lirismo transbordante, Itamar segue as pegadas da vida desse artista e realiza uma síntese poética de sua obra tendo como ponto de apoio, no contraponto entre ficção e realidade, a Dissertação de Mestrado apresentada junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte da Universidade Federal Fluminense de Alda de Moura Macedo Figueiredo. Deixemos a ficção um pouco de lado e vejamos a verdadeira história desse artista. A autora nos conta que: na véspera do Natal de 1938 Arthur Bispo do Rosário se apresentou como Jesus Cristo no Mosteiro de São Bento, no Rio de Janeiro, escoltado por SETE anjos com a missão de julgar os vivos e os mortos, além de catalogar o mundo em miniaturas para entregá-las ao Pai no dia do Juízo Final. Após esse encontro com os monges foi encaminhado para o Hospital Nacional dos Alienados, onde recebeu a classificação em sua ficha de doente: (Idade: 27 anos, Cor: Preta. Classe: Indigente. Diagnóstico. Esquizofrenia paranoide: Falecimento: 05/07/1989).
Ainda segundo Alda, Bispo do Rosário, que era natural de Japaratuba (pequena cidade a cinquenta e quatro quilômetros da capital Aracaju, que possuía uma população composta basicamente por negros anônimos que engrossavam a massa braçal dos engenhos de cana-de-açúcar do Sergipe e demais estados do nordeste, antes e depois da alforria). Bispo era descendente de escravos catequizados.
A autora escreve na conclusão de sua dissertação: “O meio constrói o homem, uma vez que a sociedade sentencia o caminho possível a ser percorrido pelas pessoas de acordo com critérios excludentes. Ser pobre, negro, imigrante nordestino, sem emprego fixo, sem endereço e diagnosticado como louco era preencher muitos dos requisitos para a exclusão em uma sociedade que se pretendia ordeira”. Bispo do Rosário construiu ao longo do tempo em que esteve interno, um acervo de obras de arte com centenas de peças (802) nas quais “retomou algo desprezado pelos homens, mesmo que não desconhecido – o sagrado”.
Ah a vida!.. Sempre a se impor, não importam os carrascos, não importam cercas, não importa que perambulemos por todos os cantos do planeta a dividirmo-nos em estrangeiros, não importam as escravidões de fato ou disfarçadas, não importam os quartos de hospícios onde trancafiamos os indesejáveis pretos, não importa o quanto tenhamos que andar, ou por quanto tempo. Sempre haverá caminhantes como Itamar Vieira Júnior (com seus sete passos ficcionais) a nos fazer pensar na plenitude a que estamos destinados. A refletir profundamente que a VIDA está sempre a pulsar, a explodir através das mais insuspeitadas formas, completamente alheia à vontade dos homens.
Livro: A oração do carrasco – Contos, de Itamar Vieira Júnior. Editora Mondrongo – Itabuna, Ba, 2017, 164 p.