Ana Sá 18/03/2022
Não sei bem se são contos, sei que contam verdades
Do Mário de Andrade contista eu conhecia apenas o ótimo conto "O peru de Natal". E neste livro, temos esta e mais oito narrativas, sendo quatro delas marcadas por traços autobiográficos. Não é à toa, portanto, a confissão que abre o primeiro texto: "não sei bem se o que vou contar é conto ou não, sei que é verdade".
Em "Vestido preto", "O peru de Natal", "Tempo da camisolinha" e "Frederico Paciência", o narrador Juca nos apresenta um pouco da vida do próprio Mário de Andrade, ainda que não importe saber o que é fato e o que é ficção. Acompanhamos o primeiro amor da infância, o luto (quase celebrativo) pela morte do pai, as viagens em família para a praia e o ensaiar de uma relação homoafetiva que forçosamente só pôde ser encarada como amizade... O fato é que muitas dessas situações tinham tudo para serem banais, não fosse a maestria do autor! "O peru de Natal" torna-se genial ao nos colocar diante da disputa de atenção encenada pelo cadáver (concreto) do peru posto à mesa e o cadáver (simbólico) do pai de família recentemente falecido. "Tempo da camisolinha" traz a ingenuidade infantil de uma forma tão querida que terminei o conto com vontade de abraçar Juca. Já "Frederico Paciência" é um conto arrebatador, o meu favorito do grupo da "autobiográfico". A história articula tensão sexual, afeto, angústia... Identifiquei na amizade ambígua de Juca e Frederico muitos dos meus alunos e de tantos outros estudantes adolescentes que não sabem como lidar com sua sexualidade e com suas demonstrações de carinho, mesmo que fraternais, em uma sociedade machista e heteronormativa. É interessante e importante ver que um escritor indiscutivelmente consagrado da literatura brasileira tem uma produção que pode ser também colocada na estante da literatura LGBTQIA+ (se adotarmos um conceito amplo de "literatura LGBTQIA+", que se oriente sobretudo pela temática do texto).
Fora desse conjunto de "autoficções", eu destacaria "Primeiro de Maio" e "O poço" por terem como pano de fundo a luta de classes. O modo como a classe trabalhadora é representada no primeiro é absolutamente genial! A premissa de um trabalhador empoderado que pretende celebrar um feriado supostamente a ele dedicado não poderia ter rendido uma narrativa melhor. Brilhante! No mais, há alívios cômicos como o conto "O ladrão", que nos mostra como a dinâmica de um bairro pode ser afetada pelo simples grito de "pega o ladrão", importando mais a fofoca e o furdunço do que o fato em si. Há também o conto de muitas camadas "Atrás da catedral Ruão" (que eu pretendo reler para melhor compreender! rs), que contrapõe moralismo e desejo a partir da relação erótica que a protagonista virgem, por volta de seus 40 anos, estabelece com elementos do espaço urbano.
"Contos novos" é um típico representante dos livros que classificamos como "bom de ler". Uma obra póstuma de 1947 que grita atualidade! Terminei a leitura abraçando a minha ignorância e me perguntando: "por que esses contos demoraram tanto para me encontrar?". Boa parte dos textos nele contidos, a meu ver, nem são exemplares geniais do gênero conto, mas isso pouco me importou. No fim, como bem me alertou Juca, não sei bem se o que li foram contos, mas sei que contaram verdades. Verdades sobre nossos afetos e sobre um Brasil que, como diria Millôr, insiste em ter um enorme passado pela frente, sobretudo no que se refere a esse patriarcalismo nocivo tanto às relações pessoais quanto às relações de trabalho. Que bom encontro foi este com o Juca de Andrade contista!