Atlas do Impossível

Atlas do Impossível Edmar Monteiro Filho




Resenhas - Atlas do Impossível


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Krishnamurti 19/08/2017

LABIRINTOS INTERTEXTUAIS
Raras são as obras ficcionais em que seus autores tentam estabelecer um diálogo com textos de outros escritores. Mais raro ainda quando nesse diálogo se inclui também uma referencialidade expressa à obra de um artista plástico. E raríssimo quando de um tal projeto, resulta uma obra de alta qualidade como é o livro de contos “Atlas do impossível” de Edmar Monteiro Filho. Aércio Flavio Consolin na orelha do volume escreve que Edmar construiu seu livro “sob a égide de artistas que apuseram ao real uma reinterpretação subversiva pela própria natureza, derivando para uma suprarrealidade que atiça a compreensão e alarga-a para ampliar a perplexidade a cada aproximação”.
Mas de quem estamos falando? Que mistério é esse afinal? Vale a pena tecermos algumas considerações, ainda que brevíssimas (como impõem as limitações de uma resenha), sobre a arte de um Maurits Cornelis Escher (1898-1972), e também sobre o escritor argentino Jorge Luis Borges (1899 – 1986), referências explícitas no livro, e como essas duas vertentes artísticas foram apropriadas, reinterpretadas, transfiguradas enfim, a receber novos e atualizados significados no “Atlas do impossível” de Monteiro Filho.
Escher produziu uma série de obras de arte que provocam verdadeira confusão mental no observador porque exploram o infinito e as metamorfoses geradas pela repetição de padrões geométricos gerando imprevisíveis efeitos de ilusão de ótica (vide logo de saída a obra “Para cima e para baixo” que foi utilizada na capa do livro de Edmar). Todas, absolutamente todas as suas criações merecem uma segunda mirada. À primeira vista, os desenhos parecem possíveis, até mesmo comuns, mas segredos escondidos em suas formas são facilmente detectados após um olhar mais atento. Já em outras obras, observamos imagens que nos remetem à metamorfose e à transformação - pássaros que viram peixes e vice-versa, e cubos que viram pássaros no seu método de ladrilhamento e ilusão de ótica. Este artista parece obcecado pelas limitações do olho humano, e buscou obstinadamente transpor para as duas dimensões da folha de papel as perspectivas imperceptíveis à visão humana. Escher, assim, produz conhecimento subjetivo. Aquele que constrói representações mentais a partir de uma série de procedimentos metodológicos capazes de expressá-las através de formas e símbolos. O que, de fato, nossos olhos são capazes de enxergar? As criações de Escher com suas xilogravuras, litografias e meios-tons, nos convidam a reflexões, das quais deriva uma busca pelo conhecimento do que realmente somos. Edmar Monteiro Filho, além das gravuras de Escher, lança mão também de alguns de seus pensamentos. Um deles figura como epígrafe ao conto “Ordem e caos”: “Não consigo parar de brincar com nossas certezas incontestáveis”. Aí o pensamento subversivo desse artista das “construções impossíveis”.
“Atlas” foi o último livro que Jorge Luis Borges lançou. Nele revela-se todo seu amor pelas viagens e pelo desconhecido. Dono de uma prosa elegante e, literalmente fantástica, este escritor conseguiu, além de produzir uma literatura fantástica e abstrata (universalmente reconhecida), criar um mundo particular dotado de uma estética pessoal e conceitos próprios. Entre eles, o reafirmado nesta sua última obra: “Não há um único homem que não seja um descobridor”. Todos somos decifradores do mundo. Interpretamos e editamos nossas vidas sempre atribuindo novos significados, estabelecendo laços, desvelando o desconhecido que nos atordoa a existência.
Flanando entre a filosofia e a fantasia, não esquecendo o lirismo poético, e o rigor ensaísta acadêmico, Borges em sua vasta obra nos instiga e ensina a duvidar dos dogmas, expõe a fragilidade das verdades irrestritas, joga com a hipertextualidade, que propicia a navegação entre vários textos e enredos, tornando a leitura de suas obras mais relativa e abrangente, gerando enfim diferentes interpretações e visões. Um autor que tem no fantástico sua maior identidade criativa. E é ante essa envolvência labiríntica da obra de Borges que vamos afinal chegar à:
Edmar Monteiro Filho que reuniu 15 contos em seu “Atlas do impossível”. Cada um deles com títulos idênticos aos das telas de Escher que também são reproduzidas no volume. E não somente; redimensiona temas explorados também por Borges, atualizando-os dentro de situações que envolvem o homem contemporâneo, este ser errante que procura (?) o inverso do enraizamento absoluto, ou seja, aquele que põe as suas raízes em movimento, encenando-as em contextos e formatos heterogêneos, negando-lhes qualquer valor como origem, transcodificando imagens, transplantando comportamentos. O homem fluido, figura central da nossa precária era em que realidade, ficção e virtualidade se sobrepõem. Entrechocam-se numa baderna geral na qual se confundem realidade, virtualidade, máquinas e homens. Em que o “rigor da ciência” (novamente Borges), e a tal funcionalidade da tecnologia não convencem nem resolvem os elementares anseios humanos.
Impossível e mesmo desnecessário citar todos os contos, até porque o leitor perspicaz encontrará ecos das ligações e confluências (e ainda outras a serem descobertas por cada leitura em particular). Entretanto citemos a título de exemplificação da versatilidade e criatividade do autor, apenas um.
Jorge Luis Borges escreveu em seu livro “This Craft of Verse” de 1992: “Por vezes à noite há um rosto / Que nos olha do fundo de um espelho / E a arte deve ser como esse espelho / Que nos mostra o nosso próprio rosto”. Edmar Monteiro Filho abre seu livro com o conto “Autorretrato em espelho esférico” inspirado em gravura homônima de Escher, e, certamente, sugestionado pelo poema de Borges. É um pequeno conto (apenas uma página) onde outros desdobramentos do ato de mirar-se em um espelho ocorrem apontando para direções insuspeitadas. Ali fica-nos a sensação do metafórico despertar do próprio EU que se conscientiza, se desenvolve e invade. Observe-se o início: “No princípio caminhava lento, seu passo imperceptível sugeria imobilidade. Chegava e seguia sem ser notado, paciente e mudo. Sua tarefa invisível notava-se em repentinas surpresas. Assim, a espera - se havia – era eternidades”. Logo em seguida vemos que este “sujeito oculto”, vai “ganhando intimidades”, muda-se para casa ao lado, e depois, mais próximo ainda. Até que “hoje estende os braços adiante, caminha num andar vigoroso, não demonstra mais qualquer indecisão. Insaciável, devora tudo o que encontra”. O desfecho dessa pequena narrativa, de alguém (quem?) que se mira em um espelho esférico é memorável. E fica-nos a pergunta atroz na consciência: como fugir de uma esfera?
A organização espacial dos textos borgesianos em sua multiplicidade criativa, remete à configuração de um arquipélago interrelacional e metarrelacional. Um cosmos composto por inúmeros microcosmos independentes e simultaneamente ponto de chegada e de partida, de criação pela recriação. Este o trabalho que Edmar Ribeiro Filho propõe, e que, por incrível que possa parecer, amplia em seu “Atlas do impossível”. No âmago das ficções apresentadas por este autor, um ponto fulcral: a condição humana trabalhada com uma fantástica habilidade narrativa. Estamos diante de um escritor com pleno domínio dos aspectos que envolvem a estruturação de suas histórias (onde ecoa um lirismo cativante). Articula e combina múltiplas linguagens, verbais e não verbais para criar sistemas autorrepresentativos onde a fusão interativa de elementos propicia uma maior consistência e eficiência de um fazer literário que o coloca entre os mais expressivos prosadores brasileiros da atualidade.
Livro: “Atlas do impossível”, contos de Edmar Monteiro Filho, Editora Penalux, Guaratinguetá-SP, 2017. 246 p.
ISBN 978-85-5833-175-3
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Penalux 19/06/2017

Construindo o puzzle enigmático na obra Atlas do impossível, de Edmar Monteiro Filho
Os 15 contos do livro Atlas do impossível (Penalux, 2017), de Edmar Monteiro Filho, conduzem o leitor não a um caminho retilíneo e plano, mas por ruas curvilíneas e íngremes, perfazendo uma geometria de dificuldades, com figuras que se desdobram num virtuosismo profundo em que o leitor não tem possibilidade de escolha, uma vez que a narrativa revela múltiplos enfoques, mostrando o plurivocalismo e as camadas de um livro em expansão até o infinito. Para tal intento, o autor utilizou como referência 15 gravuras do formidável Escher, iniciando cada conto com uma ilustração do artista holandês. O título de cada conto é homônimo a cada gravura de Escher, já revelando uma estratégia temática de Edmar Monteiro Filho, a simulação e seu estranhamento a partir de cada narrativa. Outra homenagem prestada por Edmar no seu livro excepcional é a referência ao escritor argentino Borges que num dos contos deste livro é personagem da narrativa, valendo-se o autor brasileiro da temática borgeana também para estruturar a espinha dorsal de seus textos juntamente com Escher, demonstrando a riqueza que se bifurca neste livro, unindo as influências das artes plásticas e da literatura, nos revelando os diálogos entre Escher e Borges.
No catálogo do CCBB “O mundo mágico de Escher”, do curador Pieter Tjabbes, este já vislumbrava o paralelo entre os dois célebres artistas: “...ambos abordam temáticas com filosofia (e seus desdobramentos matemáticos), infinidade e metafísica, em narrativas fantásticas onde figuram os “delírios do racional” expressos em labirintos lógicos e jogos de espelhos”. Edmar capta esta íntima relação entre ambos e produz um livro fantástico, trabalhando com a exploração dos efeitos do jogo de espelhos, como o papel do que se intenciona ou deseja com o que se afasta ou repele, que podemos ver no conto “Dia e noite”: “Observo o espelho prestes a quebrar-se...” A fragilidade do espelho aqui que pode se espatifar desnuda este espelhamento fragmentado que acaba levando ao oposto da imagem que se quer construir, ou seja, aquilo que reluz pode mostrar o seu lado mais sombrio. O paradoxo doença/cura nos leva à imagem do pharmakós que traz a cura mais também um veneno, que é a serpente enroscada em cada beleza. Como escapar de um caminho que pode levar à libertação, mas que traz inserida a ruína para estes personagens doentes que vivem nas ruas neste conto emblemático?
Há espelhos cortados, partes de um espelho formando o todo. O narrador joga com a inteligência do leitor o tempo todo, como se a própria narrativa fosse um espelho a ser refletido pelo leitor inteligente que deve juntar as peças deste puzzle enigmático. O livro de Edmar não percorre as linhas de uma narrativa fácil, é denso em seu poder de autorreflexão que se espelha no conhecimento de um receptor perspicaz. No conto “Predestinação”, temos esta urdidura máxima em que o narrador não poupa sua rica e admirável imaginação nos labirintos em múltiplos caminhos e ângulos. O conto nos faz recordar da origem da palavra “texto” que vem do latim textus, que significa “tecido”. Como não perceber que este conto é uma trama em que as várias linhas se chocam e se unem para formar um todo em seu sentido lógico e coerente? O conto nos dá a chave que tem que ser aberta pelos olhos iluminados do leitor atento. O narrador desafia a todo tempo o leitor como vemos em Machado de Assis.
Em “Convexo e côncavo”, a mensagem encontrada num origami do bonsai nos direciona para esta fragilidade tênue que se encontra na vida de nosso dia a dia: “A vida é frágil”, fazendo-nos lembrar da notável frase de Guimarães Rosa “Viver é muito perigoso”. Entre a fragilidade e o perigo, a vida carrega o peso desta medida que as personagens complexas e profundas deste maravilhoso contista nos revelam. A camada lisa do espelho é propensa ao arranhão, à rasura, à fratura. Os contos deste livro são intensos em demonstrar as peripécias da vida com suas realidades e irrealidades, com sua nudez e sonho. As personagens destes contos são andarilhos de um labirinto frágil que não lhes dá uma resposta satisfatória. O autor se pauta nas questões, nas interrogações que se encontram no lado ainda não visto do espelho, como em “Espelho mágico”, em que a foto deixada na mesinha da sala é o motivo para a narrativa e para as digressões do narrador/personagem, que se confundem.
São constantes as interferências do narrador, revelando a intensa maestria no próprio ato da narrativa e da leitura, que equaciona o conto como produto de um acontecimento, de uma presentificação, de um aqui-agora. Clarice Lispector era mestra em nos mostrar a partir de suas narrativas o “instante-já”, o tempo do agora, como proposto pela professora Carina Lessa. O conto “Três mundos”, de Edmar é impactante e revela a outra face do espelho literário, a meta-narrativa, com a autorreflexão sobre seu próprio processo de escrita. O narrador que é personagem, que busca afirmar uma verdade ficcional, onde realidade e ficção se mesclam, a memória e esquecimento se alternam, produzindo um conto de fôlego em que o contista mostra seu pleno domínio sobre esta arte difícil do conto que para muitos é o texto em prosa da literatura mais complexo de se elaborar, pois é necessária a medida certa, o ponto essencial.
Deleuze já apontava em Diferença e repetição que “...a mais exata repetição, a mais rigorosa repetição, tem, como correlato, o máximo de diferença”. Podemos perceber esta afirmação principalmente em dois contos de Edmar, “Fita de möbius” e “Mãos desenhando”. No primeiro, temos o “déja vu” da personagem e partes da narrativa são repetidas em espiral, revelando a dobra deleuziana que através da repetição produz uma diferença. O espelho mais uma vez aparece aqui, sendo uma metáfora recorrente nos contos de Edmar: “...esse tempo de onde meu rosto olhou-me do espelho, em que cada passo e cada gesto é a repetição de um enredo do qual conheço apenas o terrível desfecho.” No outro conto em que temos Borges como personagem, temos o estudante da faculdade de Buenos Aires Barros que faz uma entrevista com o célebre escritor argentino e na bela narrativa, temos um conto do universitário Barros dentro deste conto, aproximando ainda mais Escher e Borges, pois aquele aproveitava o espelhamento das formas geométricas, utilizando uma mesma imagem de forma diferenciada. Aqui o conto “Pierre Menard, autor de Quixote” de Borges do livro Ficções (1944) é também aproveitado a partir deste espelhamento. O uso dos nomes Borges e Barros não é gratuito para se falar do tema do simulacro. Assim, admiravelmente, temos um duplo jogo de espelhos. Edmar se utiliza do conto de Borges para fundamentar seu próprio e autêntico processo de escrita, pois apesar de se valer do artista plástico holandês e do escritor argentino, o contista brasileiro por ora aqui estudado é de uma originalidade surpreendente. Dialoga com grandes gênios, mas revela também sua intensa genialidade em construir contos tão elaborados e complexos em sua tessitura literária. Temos uma obra ricamente ficcional que conhece todo o processo da confecção de um verdadeiro conto sem deixar nada a dever aos grandes nomes da literatura.
Edmar Monteiro Filho produziu um belíssimo livro de contos em que ele monta um jogo de puzzle enigmático com os grandes artistas, com sua própria narrativa, com as personagens, com a escrita, com as artes plásticas, com o leitor; produzindo um tapete imaginário e real em que os desenhos geométricos se multiplicam em caminhos da escrita, fazendo de sua obra um mosaico de experiências variadas em que a autenticidade ganha voos altíssimos, costurando as linhas tênues entre a vida e a morte, entre o que se consagra, se realiza ou se fracassa na vida de personagens que deixarão o seu canto mais profundo em várias partes do mundo. O domínio do verbo em Edmar é complexo, profundo e infinito como nos espelhos de Escher e na biblioteca de Borges.

Escrito por: Alexandra Vieira de Almeida – Doutora em Literatura Comparada (UERJ)
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