Hegemonia: O Herdeiro de Basten

Hegemonia: O Herdeiro de Basten Clinton Davisson




Resenhas - Hegemonia: O Herdeiro de Basten


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Maranganha 08/03/2011

Mágica e tecnologia, religião e ciência
Recentemente entrei num sebo daqui de João Pessoa e vi uma capa preta com tons de verde, um dragão e um herói. A princípio achei ridículo, mas logo aquela combinação chamou minha atenção. Fui fisgado. O título e o subtítulo, Hegemonia - O Herdeiro de Basten, eram lugares-comuns, admito, mas me atraiu. Olhei o nome do autor, Clinton Davisson, e pensei: mais um estrangeiro. Orelha e sinopse interessante. Resolvi procurar uma mesinha sobrando e li alguns capítulos na livraria. Começou bem original e, pronto, fui pescado. Levei o livro para casa. Qual o meu espanto quando notei que o autor era brasileiro! E me conquistou pelo narrador, cuja visão foi me contaminando. Ele gravava todos os pensamentos, o que justificou o fato de, a príncipio, ele usar a técnica do fluxo da consciência, deixando claro de que aos poucos o narrador iria aprendendo a controlar suas ponderações, a ponto de ficar mais fluente, e desaparecer de vez com o tal fluxo.

Resumo: Milhares de anos no futuro, a humanidade e outras espécies aprenderam a controlar as cordas (da Teoria das Cordas), e a criar inúmeras coisas com isso. Construíram um enorme planeta, maior até que um sol, rodeado de outros bólidos. Entre eles temos Dison e Elôh. Havia algumas raças engraçadas, como os semi-deuses (brancos), as ninfas (indras e themis), os dragões (saters), os insetos gigantes (frânios), as sereias (merfolks) e até mesmo de criaturas que eu colocaria como um híbrido entre ewoks, coalas e ursinhos carinhosos (gelfos). Ron, um príncipe branco que é educado em Dison, e onde assimila rapidamente sua cultura, é obrigado a voltar depois de alguns anos, e reencontra um irmão e uma irmã, com os quais deixou várias questões pendentes. Ao voltar, percebe que as coisas não são tão fáceis como ele imaginava, e logo se depara numa conspiração que irá colocar dragões, brancos, frânios, gelfos, themis, indras, merfolks e disonianos em um grande campo de batalha, e que poderá decidir o destino do universo.

O enredo em si é um clichê, mas tem seus encantos. É claro que há falhas, afinal estamos diante de um escritor ainda na sua primeira fase. Encontramos falhas também nas primeiras fases de Guimarães Rosa e Machado de Assis. A inverossimilhança interna da obra nos alerta para o fato de estarmos diante de um narrador volúvel, como os machadianos, e que também assume a função de narrador fragmentário, como os de James Joyce. Claro que há injustificativas na facilidade com que as tradições são quebradas, nas explicações científicas e na artificialidade da organização caótica da política local e universal. Sei que meu professor de análise literária Arturo Gouveia iria discordar de mim, mas o estilo digressivo também atrapalha um pouco a leitura. Para Arturo, a digressão é às vezes até necessária. Além, é claro, de o leitor não fazer a mínima idéia de alguns termos, sendo obrigado a ir sempre a um apêndice. Neste, por sinal, há a desnecessidade de vocabulário e gramática sater. Mas creio que foi por uma boa intenção que o autor assim o fez.

Mas, e o enredo? Esse é instigante. O narrador é pouco confiável, mas o tratamos mais como um contador de histórias fantásticas que impregna o ar de maravilhas e dúvidas. O livro nos obriga a pensar a cada linha, e a duvidar de alguns pressupostos, e da própria realidade. Repleto de ganchos e ações inusitadas, a surpresa é o principal tempero do livro, prendendo-nos às suas páginas. A cada capítulo, a impressão de que há uma nova descoberta sobre a natureza aparece diante de nossos olhos. Os diálogos entre as personagens sobre tradições, religiões, ciências e natureza são uma obra prima dramática. São esses diálogos que nos imergem em um oceano de perguntas sem respostas, e nos obriga a botar a massa cinzenta ara trabalhar. Mas tem-se que desconfiar desses debates, afinal, é tudo contado em primeira pessoa, um narrador volúvel e fragmentário, que modifica sua posição diante do público com facilidade, tornando-o ainda menos confiável. Lembremos que Machado de Assis fez o mesmo em Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Além do narrador, as personagens parecem ter sido escolhidas a dedo. Há uma gama de arquétipos literários presentes em toda a literatura universal, da Ilíada à Caverna do Dragão, mas com um diferencial, algo que passa quase imperceptível: essas personagens demonstram não mais um grupo coeso, que se amam e se respeitam, mas em coesão, em busca dessa união, um grupo em constante negociação. Não é mais um conjunto autoconfiante de pessoas, mas um amontoado de gente em que ninguém confia em ninguém, com feridas abertas. Há o príncipe guerreiro, a feiticeira libidinosa, o aprendiz de mago, o pirata benevolente, o burocrata covarde, o monstro misterioso, a rainha/o rei do mal, e muitos outros, sempre apresentando pequenas variações que não esperávamos. A Rainha do mal, por exemplo, é similar ao senhor do mal de Tolkien, que passa boa parte da obra sem aparecer, apenas escravizando mentes de povos inferiores. E o príncipe guerreiro? Ao contrário da jornada do herói clássica, ele quer ser guerreiro, mas não deseja ser príncipe. Antes que digam "ora, mas isso é clichê", respondo que todos os escritores usam clichês, mas o bom contador de histórias sabe usar o clichê a seu favor, e é o que encontramos aqui.

No fringir dos ovos, é uma leitura que recomendo.
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