Maria Ferreira / @impressoesdemaria 28/10/2017Humor e racismoEste livro foi uma das primeiras publicações da editora Todavia, lançado em julho deste ano. A Todavia é uma editora nova no mercado, mas que possui títulos muito bons, O Vendido é um deles, apesar de algumas ressalvas à obra. É ótima a tradução de Rogério Galindo e muito bonito o trabalho gráfico.
O livro começa de forma bem provocativa, listando uma série de coisas que, apesar de ser negro, o personagem nunca fez. Já a partir daí o leitor pode perceber o tom do livro:
“Pode ser difícil de acreditar vindo de um negro, mas eu nunca roubei nada” (p.7).
Com uma narrativa feita em primeira pessoa, de forma não-linear, por Eu, o personagem principal que também é a quem associa-se o título, a história começa com o julgamento de Eu na Suprema Corte dos Estados Unidos, acusado de escravizar um homem e promover segregação racial em Dickens, cidade natal dele.
É uma acusação gravíssima e o pior é que de fato Eu faz isso, mas tem suas justificativas. O homem a quem foi acusado de escravizar, na verdade se voluntariou para ser escravo, praticamente obrigou o protagonista a aceitá-lo. Já em idade avançada, não dispunha de muita energia física para trabalhar de verdade, então resultava que ele trabalhava pouco. Em sua infância, foi um ator que atuou na série Os Batutinhas e o livro é permeado de relatos nos quais fica evidente o teor racista dos episódios em que ele figurava, mas não tem consciência disso, só pensa na fama.
A segunda acusação, é justificada pelo desejo do personagem de fazer com que Dickens figure novamente no mapa e para isso pinta uma faixa branca no chão ao redor da cidade, segrega ônibus com bancos reservados só para brancos e escolas, fazendo com que sejam só para negros, acredita que atitudes como estas também fazem com que a autoestima dos negros se elevem.
Eu foi criado por um pai cientista social, que usava o filho como cobaia para testar seus experimentos e teorias de como a sociedade norte-americana é racista e queria incutir no filho consciência sobre sua raça. O pai também foi fundador de um grupo de discussão em que reunia intelectuais negros em uma doceria para discutir questões raciais, denominado de Dum Dum Donuts, do qual fazia parte uma celebridade em decadência chamado Foy Cheshire, que dedica seu tempo em reescrever livros clássicos da literatura norte-americana de um modo “racialmente” correto, principalmente as obras de Mark Twain.
É um livro carregado de ironia do início ao fim. O autor expõe como o racismo é disfarçado de camaradagem e faz críticas sociais que nos levam a refletir sobre o modo como deixamos que a sociedade interfira em nossas ações.
Recheado de citações, alusões a fatos históricos e literários, é inegável o humor corrosivo, que faz rir mas também faz sentir culpa por estar rindo de algo que não necessariamente é engraçado. O livro é tapa na cara atrás de tapa na cara.
Pessoalmente, me incomodou esse uso constante do humor para tratar de um assunto tão sério quanto foi a luta pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos.
Por vezes, senti que não entendi a piada que estava sendo contada por falta de um conhecimento específico e acho que essa pode ser uma limitação para o leitor brasileiro, que não conhece muito da história dos Estados Unidos.
Acho que é um livro importante para refletir sobre uma série de assuntos relacionados à questão racial, mas é preciso ultrapassar a passividade que o humor pode gerar.
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