Paulo Silas 03/08/2016E se você se desse conta que ao acordar está morto? E se você descobrisse que os vivos não cumpriram com o que foi estipulado de acordo com sua última manifestação de vontade? E se constatasse que seu corpo havia sido contrabandeado, tendo retomado a consciência numa sala escura, mergulhado em formol, dentro de uma universidade, a fim de servir como aula prática para os estudantes? É a reunião de tais constatações pelo protagonista do livro (o morto não morto) que dá o mote da obra.
No entanto, é válido pontuar que a história retratada possui um enfoque mais profundo, estando este escondido de modo explícito nas linhas do romance. Diz-se assim diante do fato de que o romance alterna em seus capítulos com três diferentes abordagens. Numa destas, trata-se dos pensamentos e proezas do cadáver ambulante, onde constam reflexões sobre a vida, sobre a morte, além de sobre o que o protagonista observa enquanto se finge de morto. Em outra, há a exposição do que ocorre na parte acadêmica do campus, narrando conversas e reuniões entre os professores, reitor e acerca dos meandros da parte administrativa da universidade. Por fim, expõe-se também o cenário vivenciado pelos estudantes, principalmente com a narrativa de conversas entre insurgentes que se opõem ao regime imposto pela universidade, reflexo explícito do regime autoritário vivenciado à época em que se passa a história. E é justamente em tal ponto que se situa o outro cerne da história: uma exposição crítica da ditadura militar existente, já que o romance se dá no período em que tal regime autoritário se fez presente no Brasil.
É um livro curto e narrado num estilo próprio. As alternâncias de cenários de um modo singular são característicos da narrativa. A história diverte, servindo o humor presente no enredo como uma roupagem para cobrir levemente a outra mensagem que se busca transmitir. Enquanto o cadáver que se vê vivo novamente questiona o fato de ter sido contrabandeado para que um bando de estudantes o retalhassem de forma desrespeitosa (sua ordem enquanto em vida foi no sentido de que o corpo fosse doado para o Hospital das Clínicas, não para a universidade), a tensão existente no âmbito acadêmico aumenta largamente (ordem x liberdade / corpo docente e administrativo x corpo estudantil / repressão x respeito), sendo possível acompanhar inclusive o estopim de tudo isso quando da eclosão do grito de basta pelos estudantes. A violência estatal mostra as suas garras.
É nesta linha que o romance se situa e se desenvolve. Vale conferir!