Carla.Parreira 15/10/2023
Tratado do inferno, ditado por Santa Francisca Romana
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Eis os trechos que destaquei: "...Deixou aparecer, desde o berço, uma tal aversão a tudo o que era contrário a pureza, tanto que não suportava de nenhum homem, até mesmo de seu próprio pai, alguma carícia ou outras liberdades consideradas legítimas pela natureza. Na idade de doze anos ela queria tanto se encerrar em um claustro para servir no restante da sua vida o único esposo das virgens; fez para isso todos os esforços; mas seus pais sem consultar suas inclinações, apesar das suas repugnâncias, obrigaram-na a se casar em 1396 com Lourenço Ponziani, jovem nobre de Roma, cuja fortuna vinha desde o seu nascimento... Considerava-o como seu mestre e como quem para ela ocupava o lugar de Deus na Terra; era-lhe tão submissa e obediente que, mesmo quando estava ocupada na oração ou nas práticas de piedade, deixava tudo para lhe dar satisfação ou para cumprir os deveres de seu estado: o que deve ser o principal objetivo da devoção de uma mulher casada..."
Achei a narrativa até aqui contraditória, porque ela era avessa as carícias de um homem, mas deixava as orações de lado para cumprir o dever matrimonial. Seguindo: "... Francisca viu a sua casa pilhada, os seus bens confiscados, o seu marido exilado: suportou tudo com uma constância admirável. A tempestade agitava exteriormente, mas tranquilidade estava em sua alma e em seu rosto, a serenidade. A tormenta passou, o seu marido voltou do exílio, os seus bens foram restituídos, a paz entrou em sua família... Ela comia apenas uma vez por dia, alimentando-se apenas com pão e água e também alguns legumes sem sal que comia uma vez por dia. Ela jamais se permitia durante toda a sua vida, vestir roupas finas e trazia de baixo dos vestidos de sarja um áspero silício e uma cinta feita de crina de cavalo; além disso, trazia um círculo de ferro que seria a sua pele. Não contente com esse instrumento de penitência, que conservava dia e noite, tomava várias vezes a disciplina feita de corrente de ferro com pontas agudas... Se fez acompanhar por sua cunhada Vannosa, alma muito virtuosa. Iam juntas de porta em porta pelas ruas de Roma, pedindo esmola em favor dos necessitados. Deus agradou-se tanto desta conduta que realizou vários milagres em favor delas, multiplicando o pão e o vinho que distribuíam por seu amor. Confessava ordinariamente toda quarta-feira e todo sábado, e comungava ao menos uma vez na semana; frequentava muito a igreja de São Pedro, no Vaticano; a de São Paulo, fora da cidade; a de Santa Maria em Aracceli; a de Santa Maria Nova e a de Santa Maria de Trastevere, sempre acompanhada de sua cunhada. Narra-se que, um dia, foram à Igreja de Santa Cecília para fazer suas devoções, e um padre, que não aprovava que mulheres casadas comungassem tão frequentemente, deu a elas hóstias não consagradas, mas Francisca logo percebeu, não sentindo a presença do seu divino esposo, como era de costume quando recebia a sagrada comunhão; queixou-se ao Padre Antônio de Mont Sabéllio, seu confessor, que foi falar com o padre; este lhe confessou a verdade do fato e fez penitência de sua falta. O demônio, que via com raiva a virtude de nossa santa, decidiu combatê-la. Empregando todos os seus esforços para perdê-la, apresentou-se a ela com aspectos pavorosos, com gestos ridículos e imodestos. Atacava-a muitas vezes durante a oração, precipitava-a com o rosto por terra, arrastava-a pelos cabelos, batia nela e açoitava-a cruelmente...
A bem aventurada Francisca tinha então cerca de 43 anos, dos quais 31 anos casada... A morte, que não poupa ninguém, tendo levado seu marido em 1436, ajeitou as coisas em pouco tempo; e, desfazendo de seus bens em favor de seus filhos que ainda estavam vivos, se retirou para o mosteiro que havia fundado... Não fazem voto, somente prometem obedecer a mãe presidente. Recebe a intenção, herdam bens e podem sair com a permissão de sua superiora. Há no convento que elas têm em Roma, damas da mais alta classe..."
Observa-se na leitura que, assim como São Francisco de Assis, existia um movimento religioso radical de viver a pobreza. Continuando: "...Elevava-se a Deus com tanto fervor que permanecia muito tempo imóvel, completamente arrebatada em espírito... Ela passou doze anos na casa de seu pai, quarenta no casamento e quatro em religião. O seu corpo foi levado para Igreja de Santa Maria Nova, onde permaneceu três dias exposto a visitação de todo o povo, que acorreu numeroso para admirar as maravilhas de Deus. Deste precioso corpo exalava um perfume tão agradável que parecia que toda a igreja estivesse cheia de jasmins, de cravos e rosas. Numerosos milagres realizaram-se em sua sepultura com o simples toque dos objetos que lhe tinham pertencido; sobretudo milagres para as pessoas acometidas pela peste..."
Eis o que ela explica sobre Lúcifer, o qual foi um serafim: "...Abaixo dele três príncipes aos quais todos os demônios, divididos em três coros, estão submissos por vontade divina; da mesma maneira que no céu, os anjos bons formam três hierarquias presididas por três espíritos de glória superior... O primeiro dos três príncipes que governam sob suas ordens, se chama Asmodeus: era no céu um querubim, agora é o espírito impuro que preside a todos os pecados desonestos. O segundo príncipe se chama Mamon: era outrora um espírito que pertencia ao couro dos tronos, e agora preside aos pecados de ganância que inspira o amor ao dinheiro. O terceiro se chama Belzebu: pertencia na origem ao couro das dominações, e agora está estabelecido sobre todos os crimes que gera a idolatria e preside as trevas infernais... Quando falei que os demônios que estão no ar e na terra não tem chefes, só queria dizer que não tem oficiais subalternos, mas todos são submissos a Lúcifer e obedecem aos seus mandos, porque tal é a vontade da justiça divina..."
Eis o que é falado sobre os limbos: "...Quando a serva de Deus foi transportada para a entrada do inferno, viu perto um anjo de pé na entrada de outra porta: era a porta dos limbos, da prisão onde todas as almas justas da Terra esperaram por longo tempo a vinda do Libertador. Este lugar apesar de contígua ao inferno, não tem nenhuma comunicação com ele. A sua elevação em relação ao inferno é comparável a uma casa em relação às adegas de uma casa vizinha; isto é, que a sua parte mais baixa é superior à parte mais elevada do inferno. Não há neste lugar nem fogo, nem gelo, nem serpente, nem demônios, nem odor emprestado; não se ouve nem uivo, nem blasfemias; não se sofre nenhuma outra pena a não ser a da privação da luz, porque faz sempre noite. Ali é que se encontra o lugar eterno das crianças mortas sem batismo... O anjo lhe disse que, sete anos de sofrimentos nesta parte inferior, correspondem a uma pena temporal merecida por um só pecado mortal... A serva de Deus recebeu nesta visão várias luzes sobre a aplicação dos sufrágios que os vivos oferecem pelos mortos... Francisca via tudo isso, durante os seus êxtases, no espelho divino. Além disso, declarou muitas vezes que ela submetia todas as suas palavras ao julgamento da Igreja Católica, em cujo seio queria viver e morrer..."