O Colador de Resenhas 05/07/2018
INFERNOS INTERNOS EM MATHEUS PELETEIRO
“(Para um artista, não há nada pior que o comodismo e a não eventualidade).”
Matheus Peleteiro
por Luiz Otávio Oliani:
Com um título retirado de versos do grande Charles Bukowski, o livro "Pro inferno com isso”, de Matheus Peleteiro é uma obra riquíssima e de extrema qualidade, a demonstrar que o conto brasileiro contemporâneo vai muito bem.
Peleteiro se vale de um livro com múltiplas intertextualidades ou referências textuais. A demonstração mais latente é o sensacional "Legiões urbanas de decoradores de literatura", (p. 21), no qual a música de um dos grandes grupos de rock dos anos 80 e 90 é o mote indicador. Desfilam, no conto, personagens literários de grande representação, como Herman Hesse, Rubem Fonseca, Hemingway, Sartre, George Orwell, Fitzgerald, entre outros, numa leitura que finaliza com uma verdade: “O vírus da literatura tinha me contaminado. E vacina nenhuma poderia ter me preparado para tal doença.” (p. 26)
O conto título do livro "Pro inferno com isso" (p.30) traz Marcelo, um personagem atormentado na conversa com um bêbado que acredita na existência de discos voadores. Assim, o cenário ufológico aparece meio como uma alucinação de quem não está no bom fluxo das faculdades mentais, o que justifica a falta de Marcelo ao querer não se importar com o que o outro dizia.
Matheus Peleteiro trabalha exaustivamente a escolha dos títulos, numa busca de satisfação por um nome que lhe caia bem, sem excessos, ao conciliar forma e conteúdo. Trata-se de uma literatura de porradas, como se percebe na leitura de "você também (interlúdio)" (p.50), como no diálogo final: “-....É que... Você sabe...a bíblia... A tradição da família deveria se basear nas leis de Deus. / -Ah, vai se foder você também.” (p.51) ou no título de “Uma puta cativante e um cafajeste romântico” (p.80) ou “Eu vou foder com você” (p.52).
Nota-se pela leitura ilustrativa tão somente destes contos, o que não exclui os demais de qualidade semelhante, seja por títulos ou conteúdo, já que a tônica dos relacionamentos perpassa todos os textos.
Em "Mãos de poeta" (p.27), tem-se um conto emblemático, no qual os estereótipos são testados a todo tempo. A gentileza e a amabilidade que um homem pode ter em relação a amada se contrasta com a rudeza e a curiosidade que dele se espera.
O contundente "O bastante" (p.38) mostra o difícil diálogo entre os pais e filhos, na luta das gerações em busca de verdades eleitas como primordiais, como se houvesse uma única forma de ver o mundo e não há. Aqui, o eu lírico (embora se trate de prosa) comove o leitor com um final antológico do falar da figura paterna. Diz que: "Ele era um filho da puta" (p.41), mas, simultaneamente, " (...) ele me amava, o meu pai... Sentiu que sua missão tinha sido cumprida e se foi".
Interessante a discussão filosófico-existencial travada por Martin e Ted, em plena estrada, após visualizarem dois bêbados, no conto "Sem olhar pra trás" (p.42). O tom crescente do texto revela diálogos fortes e impactantes, capazes de gerar um furacão na mente dos leitores. Esta, sim, é uma forma de escrever que sensibiliza, ao retirar os indivíduos da zona de conforto.
Por meio de estudantes secundaristas em aula, no conto "A garota que não gostava de professoras de português" (p.45), a ironia fina e inteligente e o humor ácido valem a leitura do texto. Isto porque as personagens veem a literatura e a música por um prisma interessante, mas oposto àquele ensinado pela docente. Resta, contudo, uma verdade quanto ao ensino brasileiro: "E os vestibulares não mostram a literatura genial que existe no mundo" (p.49).
O conto “Um desabafo" (p.60) traz a decepção do músico de rua que recebe cem reais de um estranho. Não pelo som que produzia, mas pela possibilidade de ganhar um ouvido amigo. Aqui, Matheus Peleteiro é cruel. Investiga os quês e porquês da alma humana, dissecando o homem como se fosse a literatura fosse um exame cadavérico, em busca da causa mortis. Aqui, um tom machadiano se revela em Matheus Peleteiro, comparando o texto dele a dois capítulos do clássico “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, a saber: “Amor, amores” e “O Almocreve”. Enfim, neles, há o desnudamento do ser humano em toda extensão que lhe cabe: a mediocridade é revelada, mas sem máscaras.
Em "Recheado de culpa" (p.78), Matheus brinca com os limites da submissão e da subserviência amorosa. Até quando uma pessoa aceita perder a própria indivídualidade em detrimento do outro?
No já citado “Uma puta cativante e um cafajeste romântico” (p.80), o autor brinca com estereótipos. Expõe os personagens a teorias sobre casamentos, amores que se tornaram relacionamentos e finaliza o texto com una sacada de mestre, quando o cafajeste pede a mão da prostituta em casamento.
Em "Filosofia de bêbado" (p.87), Heitor e Gilberto passam a narrativa toda discutindo sobre o existencialismo,numa ótica muito particular, mas sempre subjetiva. Matheus encanta pelo desfecho, com a morte de cada personagem tentando descobrir a si próprio, ou seja, a própria verdade. Trata-se de um gold e placa do contista!
Em "E isso doía” (p.94), Peleteiro mostra a força das palavras. Muitas vezes,ainda que amargas, têm o poder de compelir,de impulsionar,de ajudar alguém na luta por um ideal. Isto foi o que o personagem Juca vivenciou,frente ao amigo Guido que, no passado, teria agido não a desencorajá-lo num momento,mas sim a impulsioná-lo,por meio de um empurrão não muito doce,digamos assim (grifo nosso).
Um texto que não poderia passar impune a notas é o antológico conto "O suicídio de um poeta que não teve coragem de se matar" (p.107), um dos melhores textos do livro, no qual o autor "brinca" com o conceito de imortalidade, o desejo de publicação de uma obra literária, o mercado editorial, a existência de leitores, ou seja, com tudo se relaciona à morte provável do poeta, como se fosse fator preponderante para que um intelectual se eternizasse.
E, para concluir, retorna-se à intertextualidade, também presente em "A maldição" (p.113), texto no qual uma estranha doença acomete indivíduos frente a um médico. Embora no texto de Peleteiro haja uma referência ao livro “A Peste”, de Albert Camus, enquanto a peste, como doença era a bulbônica, hoje a doença que acomete o povo é a apatia; esta leitura pode ir além. Se as personagens do texto de Peleteiro têm cãibras nos pés e sono profundo, não seria possível se lembrar da ausência de visão no clássico romance "Ensaio sobre a cegueira", de José Saramago? Em um plano diverso, num conto breve, Matheus Peleteiro surpreende e encanta com literatura de qualidade.
*Luiz Otávio Oliani é professor e escritor. Em 2017, a convite da escritora e ativista cultural Mariza Sorriso, integrou a equipe de poetas que representou o Brasil no IV ENCONTRO DE POETAS DA LÍNGUA PORTUGUESA, em Lisboa, Portugal. Publicou 13 livros, 10 de poemas e 3 peças de teatro. O título mais recente é o solo de poemas “Palimpsestos, Outras Vozes e Águas”, Editora Penalux, 2018.