Douglas MCT 05/02/2018
O universo sherlockiano flertando com o fantástico e acertando em cheio
Annabel Watson se prova uma protagonista carismática logo na primeira página dessa nova novela de Sherlock Holmes, que conta com a participação do próprio como tutor legal da adolescente, órfã dos pais e que serve como assistente do maior detetive de todos os tempos, agora mais velho e melancólico, mas não menos habilidoso, ao ter de lidar com um novo caso, do suposto assassinato de um menino pelas mãos da própria mãe, que se acusa e joga o caso na mão da dupla.
A história é brilhante, carregada de todos os elementos icônicos que permeiam a cria de Conan-Doyle e tem um excelente começo e segundo ato. Clara não só conhece muito bem o universo emprestado para narrar uma trama singular, entregando o protagonismo a uma mulher detetive (algo não exatamente inédito no universo sherlockiano, mas feito de maneira rasa até então), como também constrói frases saborosas, de palavras bem encaixadas, que colaboram para o andamento da narrativa, sucinta e instigante o tempo todo, tornando impossível o ato de largar o ebook até que se termine a leitura, que funciona do sempre, mesmo com algumas ressalvas.
Entre elas, a revisão. Acertada em mais da metade do livro, deu a impressão que foi abandonada do meio para o final, deixando escapar falhas bobas, como erros de digitação, uso torto de plural e coisinhas assim, que quase nos tiram da boa imersão, mas não chegam a ser um problema de fato. No mais, o happy end me incomodou como escolha narrativa, mas aí vai muito de um cinismo de formação de leitor de Holmes, o que não apresenta verdadeira deficiência no plot; e por fim: o detalhe de Sherlock não solucionar o caso de fato (nem ao menos por Annabel), sendo este esclarecido por outros. Este eu não perdoo, mas mais uma vez, vai do quão fanboy você é das histórias do detetive e das expectativas que se cria em cima dos novos contos sobre ele.
Fazendo uso do mito do Doppelgänger para construir sua narrativa, a autora distribui pistas, detalhes e estranhezas ao longo de cada capítulo, não deixando nenhuma ponta solta, a medida que cria uma atmosfera ora poética, ora aberrante, destilando frases e diálogos marcantes com um acerto no humor ácido de sua dupla protagonista, afiados como espadas. Principalmente no começo, por vezes, a trama me remeteu ao filme A Troca, com Angelina Jolie, e esse repertório colaborou bastante para a entrada nos cenários inóspitos concebidos a partir de Windross, as heras invasivas e toda a natureza retomando o que sempre foi seu.
Anna possui personalidade e comportamentos muito à frente de sua época, para alguém de sua idade, como também carrega a sensatez de seu pai e o faro de seu tutor, com um background improvável, que amarra sua história pessoal com a investigação, fazendo a premissa, até então um flerte com o sobrenatural, se tornar uma entrega completa ao gênero do realismo fantástico, mas não exatamente absurda, algo mais próximo do que Neil Gaiman e Rodolfo Martínez fizeram com o cenário de Holmes (com Um Estudo em Esmeralda e A Sabedoria dos Mortos, respectivamente), e menos do que se espera de um A Noiva Abominável (do seriado de Sherlock, tom apropriado para comparar aqui, pelo menos em boa parte da novela) ou o O Cão dos Baskervilles, por exemplo.
Intrigante do começo ao fim, As Boas Damas fornece um Sherlock despedaçado e incompleto, mas ainda um Sherlock por essência, em seus últimos dias, realizando uma parceria adorável de acompanhar com uma jovem e cativante assistente -- e Annabel Watson merece muitas outras histórias no formato (afinal, ainda não vimos o que aconteceu com ela e Holmes entre seus 15 e 18 anos, e acredito que não só eu, mas outros leitores da novela gostariam de saber). Leitura muito recomendada para os fãs de Sherlock, ou para quem gostaria de conhecer mais sobre o universo do detetive.