meslivres 24/11/2023
Verdade e Fantasia
O meu exemplar é de segunda mão e a última página está assim rasurada: ?Um livro disperso, sem nenhuma estória ou focalização dos personagens. Mostra, apenas, a brutalidade e o banditismo de um regime político encarnado no alcaide da pequena Macondo. Não gostei. janeiro de 87?
A pessoa que escreveu isso em 87 não só não percebeu que a narrativa não se passa em Macondo, mas em um povoado próximo, como também não foi capaz de enxergar a profundidade da obra, que não é dispersa, mas densa.
As pessoas precisam se mudar devido às enchentes que, naquela região, denunciam o ?advento do fim? do mundo. Mas, ao contrário do que se vê costumeiramente, o apocalipse não os assusta ou surpreende tanto quanto o veneno (i)moral disposto por suas portas pelas madrugadas.
A parte da população latina, o fim do mundo não é bem uma ameaça, a qual se possa se contrapor, é ao mesmo tempo estranho e familiar, contíguo.
O medo da desmoralização, esse sim, é um fantasma assombroso. O banditismo, caro leitor de 87, passa longe de ser protagonista, isso porque o crime que apavora os moradores do povoado é a calúnia anônima, capaz de por em questão a mais honrosa das senhoras, de putrefazer a mais candidata reputação.
?O veneno da madrugada? é um Maravilhoso conto comprido do Gabriel, com aquele olhar de realismo intricado aos olhos sinceros, que não se corrompem ao juízo entre A Verdade e A Fantasia.
Médico e Padre (os donos das Verdades Científica e Divina) resistem até o ultimo minuto a dar ouvidos aos pasquins, ou simplesmente constatar a relevância de seus efeitos, pois estão sempre ocupados apenas com o que é Real e Digno, respectivamente.
O alcaide já está de saco cheio dessa perturbação. Vamos dar importância ao que tem importância. Comece a dar palco a pieguices que a ordem gangrena. Esse é seu ponto de vista.
O juíz age como deve agir nessas horas, insolente, preocupado apenas com os pelos da própria cara. Ah, meu caro, nesse caso um juíz vigilante, que busca o autor do crime, só atrapalha. Afinal, qual crime? Propagar inverdades que todos já conhecem? E quais as verdades? Essas ninguém conhece. Não seria um marfório anônimo que as declamaria.
O mais importante no momento ao alcaide e ao juiz é um dado real objetivo: devido às constantes inundações, os moradores do bairro baixo transportaram nas costas suas casas para o terreno por traz do cemitério. É preciso agora adjudicar os terrenos aos colonos e pagar a indenização correspondente ao fundiário. Ah, o realismo mágico! Tão à frente nos assuntos sobre a realidade que tem a força de impulsionar o meio acadêmico.
A literatura latina é mesmo tão luzente quanto os raios de sol que a encandeiam!