Otavio.Paes 30/10/2020
(primeira publicação: 2014)
Uma boa introdução à Filosofia. Ferry tem uma didática incrível; consegue abordar temas e conceitos complexos de uma forma bem compreensível, como quando dá exemplos do cotidiano para explicá-los- sem com isso cair na superficialidade.
É escrito em forma de diálogo (entre Ferry e Capelier). Muitas vezes, Ferry acaba de comentar, analisar um assunto é então Capelier faz uma síntese do que disse seu interlocutor, já levantando uma nova questão, ou então expõe sua concepção sobre o assunto ou simplesmente faz uma pergunta (sempre pertinente); assim se dá a dinâmica da narrativa.
Ele começa respondendo a pergunta: o que é filosofia?. Depois vai trazer as ?cinco grandes respostas filosóficas?, respostas presentes, respectivamente, nos cinco períodos históricos da filosofia em sua divisão: Primeiro período, A Antiguidade- A ordem harmoniosa do cosmos; Segundo período, A era judaico-cristã- A salvação por Deus e pela fé; Terceiro período, O primeiro humanismo- A salvação pela História e o progressismo; Quarto período, O tempo da desconstrução; Quinto período, O advento do segundo humanismo.
Para Ferry, as três questões fundamentais de toda filosofia são: Teoria do conhecimento, moral e doutrina da salvação/ vida boa. E diz que tivemos a primeira filosofia completa(cobrindo essas questões) com Platão.
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-O que é a vida boa: Aquilo que ?salva? a vida humana da morte ou pelo menos lhe atribui um sentido que não seja totalmente eliminado com a morte. Todas as grandes questões existenciais, as questões relativas às idades da vida, à morte, ao luto do ser amado, ao amor, à criação dos filhos, à banalidade e ao tédio dizem respeito à espiritualidade: em outras palavras, pertencem a questão da vida boa para aqueles que vão morrer. Existe dois tipos de resposta para essa questão da vida boa para os mortais: das grandes religiões e das grandes filosofias.
- Filosofia não é moral: [...]. Vou aqui deter-me apenas em um último exemplo, o da banalidade cotidiana, com a carga de tédio que contém. Mais uma vez, não se trata de um problema ético: é possível ser uma pessoa de bem, cercada de modelos de virtude, e morrer de tédio! Ter toda noite a mesma mulher ou o mesmo homem na mesma cama, ver diariamente os mesmos narizes no meio dos mesmos rostos no escritório ou na fábrica, a longo prazo, pode tornar-se incrivelmente enfadonho. Diante do vazio da rotina, do ? comer-trabalhar-dormir? cotidiano, quem é que nunca se apanhou pensando um dia, como Rimbaud, que ?a verdadeira vida está em outro lugar?? [...]-?No fundo, a moral só fornece as regras que possibilitam as relações humanas, civis e pacificadas, mas esse contexto, por mais necessário que seja, nada nos diz sobre o que está realmente no cerne do sentido que conferimos a nossa vida: amor, a intensidade e a ampliação da nossa existência, em face da tragédia da morte?. ? Todas as grandes questões existenciais, as questões relativas às idades da vida, à morte, ao luto do ser amado, ao amor, à criação dos filhos, à banalidade e ao tédio, dizem respeito, insisto, [...] à espiritualidade: em outras palavras, pertencem à esfera da questão filosófica fundamental, a questão da vida boa para aqueles que vão morrer. [...] a questão do sentido da existência supera em muito a moral. Essa é certamente uma condição necessária da vida boa, pois pacifica as relações entre os seres humanos, embora não seja uma condição suficiente. Poderíamos viver em mundo moral e ter uma vida pouco satisfatória; não é incompatível?.
- Filosofia não é religião: ? Quando procuramos saber o que ?salva? a vida humana da morte ou pelo menos lhe confere um valor que nem a morte é capaz de destruir, também pensamos naturalmente nas respostas que podem ser proporcionadas pelas religiões. É o momento, creio, de explicar em que a filosofia se distingue delas. ? Para essa questão da vida boa para os mortais, com efeito, existem dois tipos de respostas: as que passam por Deus, escorando-se na fé, as grandes religiões; e as que tentam, pelo contrário, identificar no cerne de nossas existências, baseando-se na simples lucidez do pensamento, e mesmo da razão, uma fonte de valores que nem a morte poderia abolir; as grandes filosofias... [...] ? Já a filosofia compartilha com a religião o propósito de definir as condições de uma vida boa para os mortais, mas, por outro lado, pretende alcançá-lo pela autonomia da razão e a lucidez da consciência, recorrendo exclusivamente aos meios ao seu alcance, por assim dizer, graças apenas às capacidades de que o ser humano dispõe por si mesmo. O que, naturalmente, não impede certos filósofos de integrar a ideia de Deus a sua doutrina e mesmo de lhe reconhecer às vezes em um papel central. Apesar de tudo, mesmo nesse caso, a abordagem é diferente da religiosa, na medida em que sua contribuição filosófica propriamente dita não se escora na fé ou na autoridade de textos sagrados, mas no livre exercício do raciocínio. E por sinal, veremos que, nas épocas em que se pretendeu reduzir a filosofia ao papel de ?servidora da religião?, foi necessário limitar autoritariamente seu campo de reflexão, proibindo-a não só de criticar o dogma mas também de cuidar dos fins últimos, da salvação, da sabedoria, em suma, da verdadeira questão, a questão da vida boa, cujo monopólio a religião queria manter a todo custo.? E ele chega a afirmar: ? O que estou querendo dizer é que a questão da vida boa para os mortais é a questão suprema da filosofia, aquela que determina mais ou menos secretamente todas as outras sem por isso excluí-las?. Logo, viver bem, conferir sentido a nossa vida- um sentido válido além das contingências que se impõem a nós e que não são completamente eliminadas pela morte-, definir o que é uma vida boa para nós, mortais: é essa, portanto, a questão a que tentaram responder, segundo Ferry, todas as filosofias, as ?espiritualidades laicas?, sem passar por Deus nem pela fé, recorrendo simplesmente aos meios da razão humana e do pensamento.
- O que é preciso para formar um filósofo? ?A erudição e o tecnicismo não bastam, evidentemente, para fazer um filósofo- Isto é, para construir uma visão filosófica original-, mas são necessários para quem pretende chegar lá. [...] Somos herdeiros de uma longa tradição, da sucessão dos cinco grandes períodos da filosofia que acabamos de esboçar. Se o ignorarmos, corremos simplesmente o risco de ?descobrir a pólvora?, com se diz, de acreditar que estamos inventando ideias profundas, sem nos darmos conta de que já foram pensadas dez vezes antes de nós e, sobretudo, muito melhor por outros! Nessa questão, como em outras, o amadorismo ignora as referências e as ferramentas indispensáveis para levar a cabo suas reflexões, não dispondo das referências necessárias para distinguir entre as terras ainda virgens do pensamento e os lugares comuns.?