Wellington 09/04/2021
Guerra e Paz: 10,0
Tendo sido uma leitura de 2019, levei um tempo para organizar minhas ideias e ousar escrever a respeito. Guerra e Paz é considerada a obra máxima de Tolstoi – não à toa. É extensa não por prolixismo, mas profundidade dos temas, da história, dos personagens; há diversos protagonistas cujas perspectivas são vividas em diferentes capítulos. Contempla vários anos do século 19, tendo como pano de fundo a guerra entre Napoleão e o Império Russo. No meio disso, tudo se desenvolve: o crescimento das crianças, o envelhecer dos adultos, o amadurecimento espiritual, emocional e moral dos personagens, as mudanças de padrão de vida, os combates, a forma com que isso impacta tanto “príncipes” (ou seja, donos de terra) quanto mujiques (camponeses em regime de servidão)...
Uma menção especial vai para as paisagens descritas. Tolstoi escreve de forma poética, com grande sensibilidade e uso inteligente de metáforas; é meu autor favorito. A metáfora é mais valiosa que a descrição crua: ela puxa a subjetividade do leitor para contemplar um cenário, ao invés de apenas analisá-lo friamente. Em outro livro, Khadji-Murát, o autor começa com uma metáfora: um tufo de flores silvestres é esmagado por uma carroça para, momentos depois, voltar lentamente à posição original – uma analogia de como o ser humano é ou pode ser. Em Guerra e Paz, há inúmeras analogias da mesma natureza.
A visão de mundo do autor é incluída em diálogos, pensamentos, leves ironias, passagens mais longas a respeito do que ele considera “o movimento do mundo”, sua consideração do ser humano como ahistórico (no sentido de que não aprende com a história, tampouco é determinado por ela), etc. “É prazeroso para os historiadores acreditarem que a história determina a vida; assim como o intelecto o é para os intelectuais”. No excelente prefácio, aponta-se: Tolstoi tinha orgulho em se colocar à parte da Europa mais tradicional, ou, em suas palavras, “aquele pequeno recanto a noroeste do Velho Continente”.
Há duas temáticas sempre presentes em suas obras: a morte e a sabedoria da pessoa dita simples – os camponeses, os iletrados, enfim, aqueles que não eram nobreza e que, em suma, constituíam o seio da nação russa. Em Guerra e Paz, isso é extraordinariamente visível.
Me prolongarei a respeito de um personagem: Pierre. Começando ateu e passando por inúmeras vivências, termina com uma espiritualidade sem nome (afinal, de que servem definições?) que contempla o todo da vida. Passa de uma visão egocêntrica e fechada em si mesma para uma que se conecta com o mundo ao seu redor. Em especial, é o encontro com um idoso, sempre acompanhado por um cão, que o convence de que a vida se trata de muito mais do que apenas páginas de livros, dinheiro ou eventos sociais (o contexto de tal encontro é especial demais para eu dar spoilers). Pierre é exposto a guerra, fome, privações, riquezas, opulência, festas, hedonismo, miséria, aprisionamento, batalhas, amor, paixões, mágoas... E cresce com tudo isso. Que personagem riquíssimo.
Entre o tomo um e dois, tive uma pausa de vários meses; assim Guerra e Paz exigiu de mim. Se citei Pierre, não deixo de citar Natascha, Sônia, Andrei, Mária, Nikolai... Sim, me recordo dos nomes mesmo dois anos depois. Lembro de Mária com ternura. Também me recordo do general Kutuzov: desprezado por todos, acaba sendo o único que compreende do que realmente se trata a guerra. Voltando à pausa que me foi exigida: amadureci junto com os personagens. Simples assim.
A tradução é impecável; a edição é linda, com capa dura e um box para acompanhar. Lembro que os materiais de apoio (prefácio, posfácio, notas explicativas) eram excelentes. Não é algo muito fácil de carregar por aí, mas faz parte. Considero Guerra e Paz uma das principais obras que me ajudaram a desconstruir alguns dogmas pessoais e considerar outras perspectivas. Por isso, foi um dos primeiros livros a ganhar minha nota dez.
Reitero: Tolstoi aprecia as temáticas de morte, busca espiritual, sabedoria dos “simples”... Não se engane quem começar a ler e se deparar com bailes suntuosos. Leia com aguçada intuição e perceberá a ironia subjacente: “não é disso, afinal, que se trata a vida”.