Allysson Falcon 30/07/2020
Decepcionante...
Livros que começam com o pretensioso título de "tudo o que você precisa saber disso ou daquilo" escondem uma contumaz superficialidade. Normalmente tentam abarcar "tudo o que você deve saber" em um resumo oportunista, que transmite a mensagem falaciosa que você não precisa se aprofundar sobre o assunto para entendê-lo.
Evidentemente essa é uma premissa falsa. E esse mesmo mal está presente em Tudo O Que Você Precisa Saber Sobre a Primeira Guerra Mundial, do jornalista Santiago Farrell. Historiadores profissionais costumam franzir a testa para livros de jornalistas, supostamente históricos.
Tendo a concordar com os profissionais. Mas há honrosas exceções, jornalistas que escreveram belos (e acurados) relatos históricos de conflitos, dentre eles, por exemplo, o monumental Ascensão e Queda do Terceiro Reich, de William L. Shirer e os vários livros escritos pelos brasileiros Joel Silveira e Rubem Braga, ambos correspondentes na Europa durante a Segunda Guerra Mundial.
Farrell não integra essa honrosa lista.
O livro dele é uma verdadeira "colcha de retalhos" de episódios da Grande Guerra, descritos em 50 capítulos, todos com 3 páginas e cerca de 60 a 70 linhas cada, fora de ordem cronológica. O livro lembra o velho formato almanaque, uma coleção de miscelâneas sucintamente relatadas, como verbetes.
Em sua defesa o autor expõe suas razões no prólogo, entitulado por ele como Advertência Inicial. No breve, aliás breve como tudo no livro, introdutório, Farrell diz que existem milhares de estudos sérios e profundos sobre a Primeira Guerra. Mas, não sem uma farta dose de soberba, ele diz que apesar das milhares de obras nenhuma respondeu de forma convincente as perguntas dos motivos da guerra e porque ela foi tão mortal e destrutiva.
Tive de ler essas palavras algumas vezes para acreditar que ele realmente escreveu essa completa asneira.
Sendo um formato de "almanaque" poderíamos concluir que o opúsculo, que das 240 páginas trás 64 em absoluto branco, eventualmente serviria como um introdutório para o estudo do conflito. Correto? Infelizmente não.
Além de ser extremamente resumido, cada tópico é apresentado nas rígidas 60 linhas de 3 páginas, e para piorar, o livro tem tradução ruim do original espanhol. Várias vezes se inverteu o sentido de frases e trocaram os personagens pelos seus opostos. Além de alguns equívocos factuais.
O erro mais grotesco, entretanto, está na página 65, no sugestivo capítulo entitulado Matar Hitler. Aqui o autor toma como fato real o suposto episódio em que um soldado inglês poupou a vida do cabo Adolf Hitler, nos campos de Marcoing, em setembro de 1918.
Essa lenda teria surgido quando Hitler, supostamente, teria afirmado a Neville Chamberlain, primeiro ministro inglês, durante as conversas de Munique em 1938, que um soldado inglês teria lhe poupado a vida na Primeira Guerra. Hitler estava recuando com seus compatriotas, ferido por gás, desarmado e o soldado inglês teria apontado seu fuzil, mas não atirou.
O tal soldado inglês era Henry Tandey, que disse ter poupado vários alemães feridos em fuga, ganhando certa notoriedade na imprensa britânica.
A história é completamente bizarra e absurda, absolutamente fantasiosa. Em primeiro lugar, na data em que Tandey afirma tal fato, 17 de setembro de 1918, Hitler estava a mais de 80 km do local, em licença. Posteriormente, Tandey mudou seu relato e a data do encontro, para 28 de setembro. Mas Hitler ainda estava de licença médica, cego pelos efeitos do gás mostarda e não voltaria mais aos campos de batalha até o fim da guerra.
O outro absurdo narrado por Tandey é que o primeiro ministro Chamberlain, ao voltar de Munique, ligou para ele, para falar do fato, pois Tandey era famoso no país por ter deixado alemães escaparem.
Tanto o biógrafo de Chamberlain, como o próprio biógrafo de Tandey, desmentem essa suposta ligação telefônica. O primeiro ministro, extremamente ocupado, tinha mais o que fazer que telefonar para um soldado e fazer ilações estapafúrdias.
O bom senso nos diz que não devemos esquecer que, em 1918, ninguém sabia quem era Hitler. Por que Henry se lembraria e se arrependeria daquele encontro específico, especialmente quando Hitler também estaria extremamente desgrenhado, coberto de lama e sangue, muito diferente fisicamente do Hitler de 20 anos depois.
Farrell apresenta essa pantomima como fato real. No fim do minúsculo capítulo ele faz uma "ressalva" e diz que "muitos historiadores duvidam do relato". Aqui ele mente: nenhum historiador sério jamais levou essa fanfarronice como algo crível.
Vale lembrar que a mesma bobagem foi apresentada pelo History Channel no documentário "Guerras Mundiais", que por sinal é péssimo, cheio de erros factuais e fofocas apresentadas como verdades. Há muito tempo, da velha e boa História, o History Channel só conservou o nome do canal.
Diante de tudo isso, apesar de decepcionante, o pequeno livro de Farrell não me surpreendeu, Eu esperava muito pouco dele. Mas ele conseguiu ser pior.
Reconheço que militares de carreira, historiadores e demais estudiosos de temas militares vão se aprofundar muito mais que leitores comuns, mas existem inúmeros livros para aqueles interessados numa introdução honesta à Grande Guerra.
Dentre eles recomendo:
"A Sagração da Primavera", de Modris Eksteins;
"Primeira Guerra Mundial", de H. P. Willmott;
"Canhões de Agosto", de Barbara Tuchman;
"Os Sonâmbulos - Como Eclodiu a Primeira Guerra Mundial", de Christopher Clark
Dentre outros...
Para completar o triste pacote a editora Planeta, na edição brasileira, estampou na capa do livro um tanque russo modelo T-34, que apesar de desenvolvido em 1937, só entrou em combate no final de 1941, na Segunda Guerra. Evidentemente o T-34 nunca pisou nos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial.
Os erros já começam pela capa.
Boas leituras.