Ladyce 04/06/2018
Apesar de bastante conhecido por obras literárias que se tornaram filmes -- O Leitor, O Amante, O Fim de semana -- só agora li um livro de Bernhard Schlink: A Mulher na escada, traduzido do alemão por Lya Luft e publicado aqui no Brasil, no início de 2018.
Contradizendo a crença de que só se torna popular o que não tem qualidade, fiquei encantada: trama interessante, paixões de diversos matizes, complexidade de motivações.
À primeira vista, trata-se de uma disputa de amor: três homens apaixonados por uma mulher. Peter Gundlach, um industrial, pede ao pintor Karl Schwind, que retrate sua esposa, Irene. Na tela Irene aparece nua, descendo uma escadaria. Durante a pintura, à maneira de Pigmaleão, Karl Schwind se apaixona por Irene, que foge e vai morar com ele. No contrato entre os dois homens está a cláusula de que o pintor é obrigado a restaurar a tela se essa se danificar, para que não perca qualidade nem valor. Um advogado é contratado para examinar a questão dos repetidos danos à obra que forçam o pintor a continuamente restaurar o retrato da mulher na escada. Karl Schwind defende que Peter Gundlach danificava a tela propositadamente. O advogado chamado, nosso narrador, que permanece sem nome através da trama, é o terceiro homem a se apaixonar por Irene e só começa a nos contar a história quando muitos anos mais tarde, bem depois do desfecho do caso, ele visita uma galeria de arte e vê o quadro da mulher na escada exposto aos visitantes. Sente-se então tentado a localizar Irene e quando o faz, refletem juntos sobre o passado. A história é concluída de maneira coesa, complexa e inesperada. A trama é admiravelmente
desenvolvida, em ritmo envolvente e em poucas páginas.
A mulher na escada, para mim, não parou aí. O desenrolar da história, a complexidade dos temas e o acerto de contas final com exposição de traições em um passado longínquo, lembram-me a obra prima de Sándor Márai, As brasas, mas em prosa mais leve e dinâmica. Diferente deste último, o livro de Bernhard Schlink cai como uma luva nos arquétipos descritos e desenvolvidos pelo psiquiatra Carl Jung. Irene é uma sedutora que desliza de um relacionamento ao outro. Usa da sexualidade. E, escorregadia, não se compromete mantendo a independência como pode. Goza de poder, fascina e amedronta. “Ela sabia se controlar, sabia se impor. Não me ocorria nada que pudesse leva-la a matar. Mesmo que seu segundo marido a visse apenas como um troféu, como o primeiro, mesmo que seu amante seguinte tivesse querido usá-la novamente, se o chefe cujos avanços ela recusara a tinha rebaixado de posto, ou o vizinho a havia assediado na escada, Irene teria sabido se defender de tudo isso [97]”. Como a sereia do arquétipo, ela serve de porta de entrada para o inconsciente dos homens que fascina. Cada qual irá fantasiar sua existência com Irene de maneira diferente. Mas ela se preserva, como o ser sobrenatural que enfeitiça, ela escapa ilesa de todos os relacionamentos.
Como se não bastasse, Bernhard Schlink, aborda temas feministas, como a visão masculina da mulher como objeto, e também nos faz pensar sobre os direitos legais de uma obra de arte. Este é um livro que abre muitas portas para uma boa discussão, da mitologia grega ao feminismo, da psicologia aos direitos das obras de arte: a quem pertencem. Schlink não oferece soluções, mas brilha no levantar das questões. Uma excelente e rápida leitura.