Krishnamurti 22/02/2018
Diário da casa arruinada
“Diário da casa arruinada” – romance, do senhor Tiago Feijó, é livro que impõe mistérios desde a primeira página onde encontramos breve nota do autor: “Em novembro de 2015 comprei uma casa nos arredores de G... A casa estava em ruínas, desabando de decrepitude. Durante sua demolição, encontraram num quarto dos fundos um cofre aberto e dentro dele um caderno. Trouxe o caderno comigo e descobri que se tratava de um pequeno diário, escrito a lápis, que li em dois dias. Dois dias que me conduziram ao centro de um segredo terrível que parece ter devastado toda uma família”. O romance portanto é a transcrição do tal diário escrito pelo personagem Joaquim, muito embora a credibilidade da existência de tal figura – e respectiva família -, não tenha sido atestada pelos que moram/moravam nas imediações da casa.
Joaquim, um ex-estudante de letras e escritor frustrado é casado com Madalena, com quem tem uma filha chamada Selene. Os três moravam na casa “Arruinada” onde Irene trabalha como uma espécie de governanta. Eis o quarteto em torno do qual gira a narrativa que também inclui de maneira tangencial o pai de Quim, um gerente de banco. A relação do casal Quin e Madalena está totalmente falida e a decisão de parar de fumar do protagonista, o desprezo de Madalena, o medo de perder o convívio com a filha pequena Selene, fazem com que o texto, que é escrito diariamente e por um curto espaço de tempo, desnudem a alma de um ser sensível e amoroso, embora de débeis atitudes. Este arcabouço ficcional vai nos revelando também, aos poucos, alguém que valoriza o ato de escrever, mas revela também o narrador (autor) que não pretende apenas comover, emocionar com uma história bem contada, ou informar de maneira didática sobre questões sociais da atualidade. Busca como diria Muniz Sodré “produzir um sentido de totalidade com relação ao sujeito humano, fazendo entrecruzarem-se no texto, história, psicologia e metafísica”. Trecho:
“Eis a longevidade das palavras. Os homens, os meros homens, passam, todos entregues ao desejo de continuar. As palavras, estas, despretensiosamente, permanecem tatuadas nas muitas páginas de um livro, quando não no próprio coração dos homens efêmeros. E estas minhas palavras, quanto durarão estas minhas palavras? Dependerão apenas da saúde orgânica deste caderno, onde as escrevo agora? Ou serão transpostas e se multiplicarão nas páginas dos livros? Serão capazes de oferecer alívio aos aflitos e desesperados? Ou serão apenas tolas palavras destes meus dias de abandono e devaneio? Por fim, eu as entregarei ao fogo ou aos homens? Quero crer que escrevo para mim a minha própria vida, mas não estarei eu escrevendo para os outros a vida de uma outra pessoa?”. p. 116.
Ocorre que a relação entre Quim e Madalena (uma pintora dada à bissexualidade e certa depressão), desmorona aos poucos e entram como elementos dramáticos suspeitas de adultério. Feijó direciona a narrativa sobre um suporte de estrutura clássica, com princípio/tensão, clímax, desfecho e catarse, a partir de seus “conteúdos fabulativos”, visando a mobilizar a consciência do leitor, exasperando a sua sensibilidade. Depois de sua boa estreia como contista o autor segue desenvolvendo características estilísticas próprias, como mais adiante falaremos. Neste seu “Diário de uma casa arruinada”, lança mão inclusive dos recursos da metaficção e intertextualidade, o primeiro enfatizando o conflito entre realidade e ficção. A intertextualidade operando no interior da narrativa, interligando textos que carregam um compromisso grande com a verdade, a este propósito veja-se as referências a um sermão do padre Antônio Vieira e “Alice no país das maravilhas”, clássico infantil de Lewis Carrol. Tudo a funcionar de modo a aumentar a tensão e a complexidade do jogo de oposição entre realidade e ficção. Uma tensão proxima do conflito vivido pelo sujeito na Pós-modernidade por certo. O que um trecho assim não desperta no leitor?
“... da coragem de relatar esta sina que me deu o lápis à mão para que eu contasse quem somos e o que fizemos das nossas vidas. Sem esta coragem, que homem eu serei diante deles? E, neste passo, este diário foi se revelando e se erguendo das sombras, até que dei com ele aberto por inteiro e nele penetrei, recebendo este segredo: este caderno leva a minha história para dá-la aos outros, propalando a todos a ignomínia de minha casa”.
E não se pode afinal, deixar de registrar em um tempo em que faz-se “gato e sapato” com a língua, mais um aspecto da ficção de Tiago Feijó: seu estilo. Esse “meio-termo” entre a língua e a literatura. Antoine Compagnon chama a atenção para o fato de que, por mais que se decrete a morte do autor, que se denuncie a ilusão referencial, que se critique a ilusão afetiva, ou se assimilem os desvios estilísticos a diferenças semânticas, o autor, a referência, o leitor, o estilo sobrevivem na opinião geral e vem à tona logo que os censores relaxam a vigilância, mais ou menos como esses micróbios que julgávamos erradicados para sempre e que voltam para nos lembrar que estão vivos. “O estilo para o escritor tanto quanto a cor para o pintor, é uma questão não de técnica, mas de visão”, escreverá Proust, por ocasião da revelação estética de “O Tempo Redescoberto”, concluindo a definição de estilo como visão singular, marca do sujeito no discurso que em Feijó é marcante em seu “Diário de uma casa arruinada” de desfecho surpreendente. Escreve como quem brinda o leitor com uma taça de vinho fino. Veja-se o estilo no trecho:
“Aquele ato escrevi sobre o balcão da adega, às expensas da frouxa e fraca luz duma vela. Enquanto o compunha, o homem atrás do balcão se ocupava em repor o vinho na minha taça, quando de todo esvaziada. Eu suspendia o lápis do papel para escutar o som do líquido vertido pelas mãos daquele homem mudo, sem uma palavra na boca. E numa das vezes que me prestou tal favor, nesse verter de vinho, uma gota mediana saltou de dentro da taça e veio cair sobre a palavra ‘mulher’, palavra esta que designava Madalena em cena. A gota se expandiu devagar sobre a palavra recém-escrita no papel. ‘... uma gota de sangue na alvura do tecido...’. Para mim, que então já tinha metido taças e taças na cabeça, aquilo foi a predição de uma tragédia, um signo obscuro me prevenindo de mais fundas agonias. Soergui a cabeça pesada de pensamentos estranhos e dei com os olhos do homem mirando a gota vermelha que continuava se abrindo sobre o papel”. p.146.
Livro: Diário da casa arruinada – Romance de Tiago Feijó– Editora Penalux, Guaratinguetá-SP, 2017, 168p.
ISBN 978-85-5833-270-5