Alê | @alexandrejjr 03/03/2022
A vida das memórias
A literatura de Zélia Gattai é de uma linhagem muito específica. É preciso entender que, mesmo sendo testemunha dos eventos que narra, Zélia usa a magia da memória para criar um mundo ainda mais atraente, como se já não bastasse a sua extraordinária vida. E isso é literatura na sua melhor forma.
Para entender “Senhora dona do baile” é preciso um breve contexto, que a própria autora vai nos dar. Aliás, como se fosse a avó de nossos sonhos, Zélia conduz sua história com tamanha maestria que me fez duvidar, em alguns momentos, se eu não era um parente distante - e pobre, claro - dos Amados. Tirando a brincadeira, o texto deslizante como manteiga diante de nossos olhos é uma das milhares de qualidades deste livro. Outra qualidade que vale destacar é o riquíssimo panorama social, cultural, político e ético que nos é apresentado.
O ano é 1948. No ano anterior, o Partido Comunista teve seu registro cancelado no Brasil e todos os seus parlamentares entraram na clandestinidade - incluindo, portanto, Jorge Amado. Afinal, estávamos vivenciando um período político fervilhante com o início da Guerra Fria no mundo. Por aqui, os brasileiros lidavam com o fim do governo ditatorial de Getúlio Vargas e uma “aparente” democracia com o general Eurico Gaspar Dutra, que não simpatizava muito com os comunistas. É nesse contexto que Zélia, no Brasil e com um bebê no colo, resolve se encontrar no exílio com Jorge Amado, que já estava amparado pela lista interminável de seus amigos camaradas de outras latitudes. E é desse ponto que os leitores partem para uma viagem que talvez poucas pessoas no mundo terão a chance de repetir - a não ser pela literatura, claro.
O interesse em uma literatura memorialista sustenta-se, principalmente, na qualidade do que se conta. E Zélia tinha muita coisa para contar. A cada página virada, pequenos segredos, muitas angústias e incontáveis alegrias são compartilhados conosco, leitores. Passamos por Bucareste, Budapeste, Moscou, Kiev, Paris, Praga, Pequim, Varsóvia… a lista não tem fim. No meio de tudo isso, peripécias com babás, a dificuldade do idioma e seus muitos intérpretes, convenções comunistas sobre cultura, festas regadas a bons vinhos e muita política, a sempre presente saudade do Brasil, a incessante busca pela paz e a invejável galeria de convidados ilustres. Esse último item, aliás, é o que desde o princípio chamou minha atenção para este livro. Pense: quem minimamente gosta e conhece um pouco de cultura não gostaria de saber o que pautou os encontros de Zélia e Jorge com os Pablos - Neruda e Picasso -, o intelectual marxista György Lukács, o casal existencialista Jean Paul-Sartre e Simone de Beauvoir, a bailarina russa Galina Ulanova (que supostamente teve um affair com o príncipe Philip e deve ter dado, à época, com perdão pelo trocadilho infame, dores de cabeça à rainha Elizabeth II) e artistas plásticos notáveis como o brasileiro Carlos Scliar e o russo Marc Chagall. É um mosaico muito preciso de um tempo que talvez jamais volte. E por isso é tão relevante.
É na intimidade e na humildade presentes nas páginas de “Senhora dona do baile” que Zélia Gattai ganha seus leitores. Sem pretensões artísticas ou estilísticas, Zélia faz aquilo que todos procuramos em algum momento da vida: boas histórias.