Dany 07/08/2022
Enterre Seus Mortos, ou, "Assume Teus B.O."
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Em Enterre Seus Mortos, Ana Paula Maia constrói uma narrativa sem floreios, com cenas curtas e que, às vezes, “pulam” de um take a outro, quase como um roteiro frio e calculista, sobre um homem chamado Edgar Wilson, e seu trabalho. Edgar é um removedor de animais mortos e vive nas estradas ermas de um lugar sem nome e, aparentemente, sem Deus e nem Estado.
Essa “ausência” se reflete no grupo religioso que tenta converter e batizar pessoas e são vistos com estranhamento, numa delegacia e IML sem viaturas nem estrutura, na fumaça de uma pedreira que adoece os moradores sem que ninguém mova uma palha para mudar a situação, e no próprio relógio da igreja, parado há anos no centro desse lugar que bem poderia ser qualquer interior do nosso país.
Junto de seu colega, um padre excomungado de nome Tomás, Edgar Wilson segue, dia após dia, seu trabalho invisível mas necessário, mais um dos tantos que compõem nosso país. Quase de forma mecânica, ele junta, transporta, mói e dá fim ao corpo de diversos animais mortos. Enquanto seu colega se preocupa com a alma, Edgar se preocupa apenas em tirar os corpos, “rejeitos” do caminho, para que a vida siga acontecendo.
Como tantos outros desse seu universo, Edgar Wilson não é de questionar, ao menos não com palavras. Apesar disso, sua vida mecânica lhe permitiu ser reflexivo e, diferente dos outros ao seu redor, talvez sem que ele mesmo tenha se dado conta, ele se converteu em uma engrenagem um pouco diferente das demais: enquanto cada um está preocupado em fazer, quando muito, “apenas seu trabalho”, Edgar não descansa até dar cabo da sua função, ou do que ele acredita que ela seja, até o asfalto da sua consciência estar tão limpo quanto o das estradas que ele limpa.
Tudo isso vem à tona quando ele se depara com o corpo de uma mulher enforcada, alguém que ninguém deu falta nem “reclamou”. A partir daí, Edgar e Tomás vão esbarrar nesse sistema falho e completamente ausente, onde as responsabilidades são passadas de mão em mão até que os problemas - ou, corpos -, se amontoem e sobrecarreguem aqueles que ainda tentam fazer, ao menos, a sua parte.
Uma espécie de faroeste noir que nos apresenta a realidade nua e crua do dia-a-dia de “homens brutos”, como é conhecida a trilogia da autora que sempre traz o personagem Edgar Wilson, em situações bizarras e lugares inóspitos, para dizer o mínimo. Ao mesmo tempo, brutal e metafórica, a obra que apelidei “Assume Teus B.O.s”, - numa tentativa de trazer uma leveza e um respiro pra mim mesma quando lembro desse livro - é o retrato do Brasil contemporâneo, que percorre estradas sinuosas, atropelando o que vê pela frente enquanto deixa os “restos” para os Edgar Wilsons da vida juntar.
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